Opinião: “Municipalização do País”, por Fernando Vaz das Neves

A regionalização, apesar de prevista na Constituição desde 1976, nunca foi implementada em Portugal. Nos anos 90 do século passado, o debate sobre a mesma intensifica-se, levando mesmo o governo de Cavaco Silva, em 1991, a aprovar a Lei-quadro das Regiões Administrativas, que definia os órgãos de poder a criar em cada região (Juntas Regionais e Assembleias Regionais), as respectivas competências e atribuições, a forma como as Regiões iriam ser instituídas, e o regime eleitoral das futuras regiões, apenas não definindo o número de regiões a criar e a sua delimitação.

Todavia, aquando da Revisão Constitucional de 1997, a criação de Regiões Administrativas em Portugal ficou obrigatoriamente sujeita a referendo. É neste contexto que, em Novembro de 1998, se realiza o referendo à Regionalização em Portugal. Referendo no qual a maioria do Povo Português rejeitou a regionalização do país. De então para cá, o tema não caiu no esquecimento e, de quando em vez, especialmente quando o poder político não tem nada para dizer, o tema tem vindo à tona.

Sem coragem para enfrentar o Povo Português em novo referendo, e com uma classe política cada vez mais incompetente para a governação, nos últimos anos, em especial a partir de 2018, a classe política encontrou forma de, não havendo regionalização, transferir competências atrás de competências, para os municípios.

Perante tal dilúvio de transferência de competências, nem sabemos se o governo – poder executivo -, possui, ainda, competência alguma ou se, como dizia Eça de Queiroz, “o poder executivo, deixou de ser um poder do estado, é uma necessidade do programa constitucional: está no cartaz, é necessário que apareça na cena. Não governa, não tem ideia, não tem sistema; nada reforma, nada estabelece; está ali, é o que basta. O país verifica todos os dias que alguns correios andam atrás de algumas carruagens – e fica contente”.

Se não vemos mal algum, e até concordamos que algumas competências passem para os municípios – por exemplo em 1997, o Governo passa, e bem, para os municípios competências relativas à atividade de transportes de aluguer em veículos ligeiros de passageiros e a criar regras específicas sobre o acesso à profissão de motorista de táxis – já não percebemos nem podemos concordar com esta avalanche de transferência de competências, – educação, segurança social, saúde, entre outras – como se estas competências não fossem do Governo central, aliás bem plasmadas que estão na nossa Constituição da República Portuguesa.

Assim, o Estado passa para os municípios apenas aquilo que não lhe interessa gerir, as chatices do dia a dia, criando deste modo um conjunto de complicações e dificuldades aos municípios na gestão destas novas competências, a que acresce o problema latente, em muitas autarquias, de falta de recursos humanos para fazer face a esta nova realidade, a que se junta a dificuldade legal para a contratação de novos funcionários.

É claro que isto também acontece assim porque, infelizmente, muitos dos nossos autarcas, reclamam, reclamam, mas não têm a coragem de bater o pé, e a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) não passa, infelizmente, de uma correia de transmissão do Governo.

Está lá, não para defender os autarcas, mas para defender os devaneios governamentais. Ficará para memória futura a coragem e audácia da Câmara Municipal do Porto de, por um lado, não aceitar as competências da Ação Social 2021 – uma vez que iria representar para o município um défice anual superior a 6 milhões de euros, e por outro, a coragem de abandonar a ANMP, uma vez que esta, como defende o Presidente da Câmara Municipal do Porto, não tem capacidade para representar os Municípios. Se mais municípios seguissem o caminho da Câmara Municipal do Porto, talvez a situação pudesse mudar de figura. Agora se mais ninguém o fizer, ficará tudo como dantes.

Como bem escreveu Miguel Torga “É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão. Somos, socialmente, uma coletividade pacífica de revoltados”.

Fernando Vaz das Neves

(Deputado Municipal na Assembleia Municipal de Miranda do Douro)

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