Entrevista: «Com Deus a vida tem mais sentido» – Dom José Cordeiro

Como já é tradição, o Bispo de Bragança-Miranda veio celebrar a solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, à Concatedral de Miranda do Douro para assim reforçar a unidade e a comunhão da Igreja diocesana.

Dom José Cordeiro é bispo da diocese de Bragança-Miranda desde 2011. (HA)

Terra de Miranda Notícias: No dia 1 de janeiro, Dom José Cordeiro veio celebrar a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, em Miranda do Douro. Que significado tem a presença do Sr. Bispo, em Miranda do Douro, neste primeiro dia do novo ano?

Dom José Cordeiro.: Tem o significado da unidade e de comunhão em toda a diocese. Acresce também o facto de a diocese ter nascido aqui e por isso faz parte dos deveres do Bispo visitar Miranda do Douro. Decidi realizar estas visitas na oitava do Natal e na oitava da Páscoa, para que seja realmente verdade aquilo que pronunciamos ao dizer: diocese de Bragança-Miranda. Na atitude agradecida da história, queremos continuar a ser a Igreja, que peregrina neste território. E Miranda do Douro tem sempre encanto, não só pela beleza da Concatedral, mas também por ter sido o berço da diocese.

T.M.N.: Neste dia também se celebrou o Dia Mundial da Paz. Este ano, o Santo Padre Francisco escolheu como tema da sua mensagem: “A cultura do cuidado como percurso de paz”. Na diocese de Bragança-Miranda, a vinda das Irmãs Trapistas para Palaçoulo vem aportar um maior cuidado e zelo espiritual à diocese? O que podemos (re)aprender com as pessoas que enveredam pela vida religiosa?

D.J.C.: O Papa Francisco quando recebeu as Irmãs antes da sua vinda, disse-lhes que vinham para Portugal, o que quer dizer que o desafio é maior. Para nós é uma enorme graça, ter sido escolhida a Terra de Miranda para o acolhimento deste mosteiro Trapista, de Santa Maria Mãe da Igreja, em Palaçoulo. A presença desta comunidade monástica é como aproximar-se de uma fonte cristalina numa terra deserta. Quem ali for que se sinta habitado pelo silêncio. Na nobre simplicidade e na sóbria beleza da liturgia, do trabalho e da vida das Irmãs, os mosteiros sempre foram lugares de cultura, de catequese, de culto e de caridade. Auguramos que o mosteiro de Santa Maria, Mãe de Deus, em Palaçoulo, seja isso mesmo. Ao mesmo tempo que pedimos a Deus, o dom das novas vocações, sobretudo vocações portuguesas, porque este mosteiro está sonhado para quarenta monjas. Dez já lá estão. Faltam 30. E trinta hão de surgir, portuguesas ou de outros países, que sintam esta interpelação para uma felicidade plena, vivida no silêncio e no encontro do mosteiro.

“Para nós é uma enorme graça, ter sido escolhida a Terra de Miranda para o acolhimento deste mosteiro Trapista, de Santa Maria, Mãe da Igreja, em Palaçoulo.”

T.M.N.: Inspirou-se nas palavras de uma Monja Beneditina para escrever a homília da Missa de Natal: «Perco-me na profundidade do grande mistério: mistério luminoso na noite; mistério do eterno no tempo; mistério do espírito na carne; mistério do Tudo no nada». Porque se diz que Deus é mistério? Deus esconde-se de nós?

D.J.C: Essas palavras são Ana Maria Cánopi, uma monja que já vive a eternidade e que teve um ministério muito fecundo. O mosteiro onde ela viveu e que restaurou, na diocese de Novara, em Itália, tem cerca de 100 monjas. O que ela escreveu acerca do Natal, está num livro muito expressivo de poemas, que se chama “Pezinhos nus”. De facto, a palavra “mistério” para muitos ainda assusta e às vezes não se entende bem na cultura em que vivemos. Mas mistério não é um enigma, não é um segredo, não é nada de misterioso. É uma Pessoa. É Deus no meio de nós. E celebrar o Natal é sobretudo aprofundar a nossa fé. Porque o Natal só à luz da Páscoa se pode compreender. E de facto, muitos cristãos continuam a viver essa fé infantil, muito envolta na representação das lendas, das histórias ou do sentimento do Natal, mas não do espírito do Natal. E o verdadeiro espírito do Natal é esse mistério que nos ultrapassa, porque é Deus que vem ao nosso encontro. A fé é sobretudo essa iniciativa de Deus que vem ao nosso encontro, da nossa humanidade fragilizada. E estes tempos que estamos a viver mostram isso mesmo.

“A fé é sobretudo essa iniciativa de Deus que vem ao nosso encontro, da nossa humanidade fragilizada.”

T.M.N.: Na noite de Natal costumava jantar com alguns estudantes internacionais do IPB e com outras pessoas que vivem sós. Este ano, por causa da pandemia, como viveu a noite de Natal?

D.J.C.: Este ano não foi possível juntarmo-nos. Houve anos em que nos juntávamos mais de 200 pessoas, sobretudo aqueles que passavam sós o Natal, como os estudantes internacionais. Também não tive oportunidade de visitar os hospitais e as cadeias de Bragança e de Izeda, como habitualmente fazia. Mas tive a graça, com a Cáritas Diocesana, de ir ao encontro de algumas famílias, com mais carências e de alguns jovens estudantes internacionais, que nos abriram a porta do seu coração e aceitaram a generosidade de muitos benfeitores e de instituições. Estes fizeram chegar à Cáritas as suas doações para podermos partilhar o verdadeiro e autêntico espírito do Natal. Que não pode ficar circunscrito a um dia, tem de ser todos os dias, porque Deus nasce e renasce cada vez que temos essa atitude mais humana, mais próxima e mais fraterna.

“Deus nasce e renasce cada vez que temos essa atitude mais humana, mais próxima e mais fraterna.”

T.M.N.: Na sua homília da Missa da Noite de Natal escreveu: “A noite da pandemia que atravessamos seja Páscoa para um novo tempo de paz, justiça, amor, liberdade, fraternidade e amizade social.” São Paulo ensinou-nos que de tudo se pode retirar um bem. Que bem se pode retirar desta pandemia?

D.J.C.: A pandemia é um mal. Todos nós reconhecemos e estamos a atravessá-la como se fosse a noite escura da história mundial. Esta crise trouxe muitas outras crises. Mas a crise é também um momento de purificação, de convergência para o essencial, do dom da vida e da vida como dom. Por isso, há muito bem que podemos colher disto que realmente é um grande mal. No provérbio popular diz-se que há males que vêm por bem. Não é que a pandemia seja um bem, é um grande mal. No entanto, Deus dá-nos a força, a coragem e a criatividade para nos voltarmos para aquilo que dá sentido à nossa vida. E de estarmos mais próximos de todos, sobretudo dos que mais precisam. Há muita gente que vive só. Se calhar o maior mal é a solidão forçada. Na nossa diocese sabemos que existem mais de 3.000 pessoas que vivem sós, em suas casas. Muitas delas têm o sentido da companhia de Deus, da oração e de alguns vizinhos que velam por eles. Mas uma boa parte destas pessoas vive mesmo só e às vezes esquecidos. Daí que, em todas as aldeias, vilas, cidades, bairros temos que ser mais próximos e estar mais atentos aos vizinhos, às pessoas com quem vivemos e convivemos. Este tempo da pandemia trouxe talvez essa maior atenção e abertura. Há pessoas que me têm dito que viviam na mesma rua e no mesmo prédio e não se conheciam. E agora passaram a conhecer-se. É a tal cultura do cuidado que o Papa Francisco nos desafia a praticar na fé e na vida, uns com os outros e uns pelos outros.

“Este tempo da pandemia trouxe talvez essa maior atenção e abertura. Há pessoas que me têm dito que viviam na mesma rua e no mesmo prédio e não se conheciam. E agora passaram a conhecer-se.”

T.M.N.: Com a pandemia aumentaram em Portugal, os pedidos de ajuda, devido às dificuldades económicas e ao desemprego. Recentemente, D. José Cordeiro acompanhou uma equipa da Cáritas Diocesana e distribuiu cabazes de Natal a famílias carenciadas em vários concelhos. Na diocese de Bragança-Miranda também há situações de pobreza?

D.J.C.: Há, sobretudo nos meios onde existe mais gente, como é o eixo Bragança – Macedo de Cavaleiros – Mirandela. Em Bragança, onde tenho mais oportunidade e facilidade de conhecer a realidade existe muita pobreza envergonhada. Há muitas pessoas que viviam do seu trabalho, que foi suspenso ou lhe foi retirado, e têm dificuldade em trazer o pão de todos os dias para casa. Bragança tem hoje uma nova realidade, com muitos migrantes e muitos estudantes internacionais. Alguns destes estudantes vêm com bons apoios e bolsas de estudo. Mas há outros estudantes, que por vezes, se veem-se em situações muito complicadas e têm encontrado na Cáritas e noutras instituições – como o recém-formado grupo Jovens Sem Sofá – a resposta às suas necessidades. Para além destes, também há muitas outras pessoas que não têm sequer a coragem de bater à porta. Por isso, é preciso estar muito atento, para irmos ao seu encontro. É de realçar que muitos destes jovens estudantes necessitados só têm pedido o que realmente precisam. E sabem que há outros que passam pelas mesmas dificuldades. Felizmente tem havido muitas pessoas e instituições que têm dado à Cáritas, para que a Cáritas possa assisti-los.

T.M.N.: Sermos mais atentos e cuidadosos uns com os outros. É esse o sonho que tem para a Diocese de Bragança-Miranda?

D.J.C.: O nosso projeto pastoral de três anos, rumo à Jornadas Mundial da Juventude 2023, que se vai realizar em Lisboa, também têm esse sonho de sermos uma Igreja mais servidora da humanidade. Uma Igreja que educa, que celebra e que festeja. Significa isto que é uma Igreja que está atenta a todas as dimensões da vida humana, para que seja um cuidado integral. E de facto esse é um sonho. E esperamos que cada vez mais se vá tornando uma realidade. Sonhar para a frente. Sem esquecer que temos um passado, uma história da qual estamos agradecidos. Também temos este presente duro e difícil que enfrentamos. Mas acreditamos que Deus é maior e quer o nosso maior bem. Nós que somos criados à imagem e semelhança de Deus. Tendo -O connosco, a vida tem mais sentido, temos mais coragem, mais inteligência, mais esperança para enfrentar as contrariedades da vida. É por isso que mantemos esse sonho, de sonhar para a frente e em grande, como Deus faz connosco.

“Tendo Deus connosco, a vida tem mais sentido, temos mais coragem, mais inteligência, mais esperança para enfrentar as contrariedades da vida.”

HA


Homilia

Senhora Mãe de Deus e da Igreja

Na conclusão da oitava do Natal sabe bem cantar com regozijo a Senhora Mãe, a Santa Maria Maior: «Ó Virgem gloriosa, Mãe de Deus, ó filha predileta do Altíssimo, habitou em teu seio virginal Aquele que o mundo todo não contém, ó Virgem, que à luz deste a luz do mundo, Senhora, Mãe de Cristo e nossa Mãe!» (Hino da Liturgia das Horas).

Hoje, a narrativa do Evangelho refere a reação de Maria ao ver a adoração dos pastores ao Menino Jesus, acentuando: «Maria conservava todos estes acontecimentos, meditando-os em seu coração». O coração guarda a memória agradecida que faz a grande transformação da história. Guardar no coração, é meditar com ternura. O Mistério contempla-se no silêncio crente e orante.

O primeiro dia do novo ano educa-nos a celebrar e a festejar com esperança a Mãe de Deus e nossa Senhora com o amor de S. José. E, brota espontâneo da nossa alma o desejo enorme de um feliz, abençoado e favorável ano 2021.

  1. A gramática do cuidado integral

O Papa Francisco, na sua mensagem para este 54º dia mundial da Paz, desperta-nos para «a cultura do cuidado como percurso de Paz». Ao constatar que «o ano de 2020 ficou marcado pela grande crise sanitária da Covid-19, que se transformou num fenómeno plurissectorial e global, agravando fortemente outras crises inter-relacionadas como a climática, alimentar, económica e migratória, e provocando grandes sofrimentos e incómodos», indica «a cultura do cuidado para erradicar a cultura da indiferença, do descarte e do conflito, que hoje muitas vezes parece prevalecer».

Para a gramática do cuidado, ou seja, para a promoção da cultura do cuidado requer-se um processo educativo integral e a bússola dos princípios basilares da doutrina social da Igreja: na família, núcleo natural e fundamental da sociedade; na casa; na escola e na universidade; na comunicação social (hoje o nosso jornal diocesano Mensageiro de Bragança completa 81 anos); nas religiões; na própria Igreja servidora da humanidade.

Com efeito, «a educação constitui um dos pilares de sociedades mais justas e solidárias». Não há Paz sem a cultura do cuidado integral.

  1. Planalto de Silêncio

Neste Tempo do Advento-Natal aconteceu a tão esperada abertura da hospedaria ou casa de acolhimento, onde já vive transitoriamente a comunidade monástica do Mosteiro de Palaçoulo, em projeto de construção. Sim, ide experimentar o silêncio orante na hospitalidade do Mosteiro de Santa Maria, Mãe da Igreja, em Palaçoulo, uma nova fundação do Mosteiro de Vitorchiano em Itália. Rezar e estar naquele lugar sagrado é como aproximar-se de uma fonte límpida em território deserto .

As dez Monjas trapistas fundadoras transmitem a Esperança alegre e contagiante de quem é autenticamente feliz. Deus lhes conceda os seus dons e novas vocações portuguesas.

Todos os dias, cada ação litúrgica celebra-se com sóbria beleza e nobre simplicidade. O dia é ritmado pelas sete orações litúrgicas: Vigílias, Laudes, Eucaristia com Tércia, Sexta, Noa, Vésperas e Completas. O trabalho e o estudo completam o dia em livre pobreza e alegre simplicidade, de harmonia à insígnia beneditina: ora et lege et labora.

Em Portugal, depois da extinção das ordens religiosas em 1834, os Cistercienses não restauraram nenhum mosteiro. Damos graças a Deus, por nascer no Planalto Mirandês, um Mosteiro Trapista, da Ordem Cisterciense da Estrita Observância.

A Divina Generosidade dá, aqui e agora a Portugal, como referiu o Papa Francisco na audiência que concedeu às “corajosas” Monjas fundadoras antes de partirem para esta sublime Missão, o dom da Graça de uma nova comunidade monástica, como uma ‘aldeia para Deus’. Bendigamos o Senhor por tamanha Graça.

Os horizontes da espiritualidade e da cultura do cuidado integral alargam-se assim no Arciprestado de Miranda com os Pastores, as Consagradas e todo o Povo Santo de Deus.

É tempo de cuidar com a Senhora Mãe da Esperança e com São José, para que «Cristo habite pela fé em vossos corações» (Ef 3,17). Ele é a nossa Paz!

Miranda do Douro, 1 de janeiro de 2021

D. José Cordeiro, bispo de Bragança-Miranda

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