Entrevista

Celina Bárbaro Pinto: «Nos meios mais rurais, o sentido de identidade e de pertença é muito forte, porque as relações são mais próximas.»

Celina Bárbaro Pinto começou a trabalhar no Museu da Terra de Miranda, aos 18 anos. Seguiram-se os estudos em antropologia e museologia. Hoje, é a diretora do espaço que guarda a identidade cultural desta região.

Celina Bárbaro Pinto diz que os museus são espaços e meios de aprendizagem (HA)

Terra de Miranda Notícias: O Museu Terra de Miranda foi fundado a 23 de abril de 1982 e abriu ao público a 18 de maio do mesmo ano. Qual é a origem do nome “Terra de Miranda”?

Celina Bárbaro Pinto: A Terra de Miranda, grosso modo é o território compreendido entre os rios Douro e Sabor. No livro “As terras entre Douro e Sabor” (1904) faz-se referência, sobretudo, ás caraterísticas geográficas e morfológicas deste território, onde os rios surgem como barreiras (de)limitadoras. Para além disso, há vários autores, como por exemplo, José Leite de Vasconcelos que afirmou que as caraterísticas comuns desse espaço, também podem ser culturais e linguísticas. Se bem que o mirandês se fala nalgumas aldeias e noutras não, assim como há aspetos culturais comuns numas aldeias e noutras não. Mas, as caraterísticas geográficas e morfológicas são comuns a todo este território a que se chama “Terra de Miranda”. Esta designação “Terra de Miranda” já vem do século XII, ou seja, desde a Idade Média. Possivelmente este território terá sido doado, nessa altura, a um terratenente, um representante do Rei, que foi mandado para esta região para governar estas terras. Atualmente, é um conceito “menos” aplicado, talvez pelo facto de erradamente e muitas vezes ser apenas associada a “Terra de Miranda” ao concelho de Miranda do Douro, o que é um equívoco. Assim, como existem as designações Terras de Bouro, Terras do Barroso, Terras de Basto, Terras do Xisto, Terras de Lafões, etc. Portanto, Terra de Miranda não é só o concelho de Miranda, é um território mais vasto. A designação Terra de Miranda dá uma identidade maior e comum a esta região. E depois há as caraterísticas próprias de cada concelho, de Vimioso, de Mogadouro e de Miranda do Douro. Ninguém retira protagonismo a ninguém. Pelo contrário, quanto mais unidos estivermos, mais fortes seremos. E nesta região já somos tão poucos, não podemos dividir-nos.

TMN: O Museu Terra de Miranda é um museu etnográfico pois dedica-se ao estudo da cultura desta região. O que se pode ver e aprender no Museu da Terra de Miranda?

C.B.P.: Dentro deste espaço físico que é o museu pretendemos representar um espaço maior que é a Terra de Miranda. O próprio nome do museu remete o visitante para um contexto geográfico. As salas que apresentam o museu pretendem ser mais do que espaços estáticos, onde se mostram os objetos que representam uma cultura. E os objetos não são meros artefactos que remetem para informações como o nome, a datação ou a utilidade do mesmo. Cada objeto, e cada instrumento transmitem-nos conhecimentos e remete-nos para um ambiente social. É por isso que os museus são espaços e meios de aprendizagem. Para além da recolha e exposição de objetos caráter etnográfico e etnográfico, o Museu da Terra de Miranda também interpreta a forma de estar e de ser da gente desta região. Para isso, recolhem-se também os conhecimentos e saberes, o artesanato, a língua, aspetos da economia, da religião e das crenças, da paisagem, etc. E a paisagem, também é fundamental pois determina o modo como nós nos adaptamos a este território. Por exemplo, na agricultura da Terra de Miranda, o arado romano e o trilho utilizados são diferentes dos utilizados no resto do país. Porquê? Porque os solos e o clima também são diferentes, e o agricultor teve que se adaptar á realidade do território. São estas singularidades que nos chamam à atenção. É por isso que o nosso trabalho no museu é etnográfico, isto é, procuramos entender como é que o homem vive num determinado espaço e tempo. E no âmbito antropológico, procuramos analisar, compreender e interpretar estes diversos modos de vida. Hoje em dia, um museu é um elemento fundamental não só na transmissão e preservação de conhecimentos, como também na dinamização social e cultural de uma região.

TMN: Ao longo dos anos quais foram as maiores transformações que se operaram na vida social, cultural, religiosa e económica das gentes da Terra de Miranda? Atualmente, o que ainda permanece dos tempos antigos?

C.B.P.: A primeira grande transformação aconteceu com a emigração nos anos 60/70 seguida da mecanização da agricultura que se iniciou nos anos 70. Depois seguiu-se a construção das barragens de Picote, Bemposta e Miranda do Douro na década de 60 e a consequente abertura da fronteira com a vizinha Espanha, já posteriormente a entrada de Portugal na CEE, em 1985. Estes foram certamente os acontecimentos que mais terão contribuído para a abertura da região e contribuíram, grosso modo, para o seu desenvolvimento e transformação social, económico e cultural.
O que permanece? Os usos, os costumes, a forma de ser, de estar e de pensar, que se manifesta depois em aspetos como, a música, os colóquios, o folclore, os rituais, a dança dos Pauliteiros, a língua, os saberes, etc, etc… E a língua tem uma importância maior porque se manifesta em todos os contextos, é o meio de comunicação
fundamental e transversal a toda e qualquer ação do homem. Realço que no meio rural, o sentido de identidade e de pertença é muito forte e é por isso que se mantêm estas caraterísticas. Onde é que há tradições? Não é nos grandes centros, é nas localidades mais pequenas, nos meios mais rurais, porque é aí que há um maior sentido de identidade comum, porque as relações são mais próximas, porque convivemos mais, porque a comunidade é transmissora destes conhecimentos. Ao
passo que nas cidades, essa relação de proximidade dilui-se e o conceito de comunidade é diferente.

“Nos meios mais rurais, há um maior sentido de identidade comum, porque as relações são mais próximas, porque convivemos mais, porque a comunidade é transmissora destes conhecimentos. Ao passo que nas cidades, essa relação de proximidade dilui-se e o conceito de comunidade é diferente.”

TMN: Na exposição permanente do Museu da Terra de Miranda é possível conhecer as expressões culturais caraterísticas desta região, em vários âmbitos, como são a habitação, o vestuário, o calçado, os instrumentos de trabalho, etc.. O que chama mais à atenção dos visitantes?

C.B.P.: Os museus etnográficos têm uma forte relação com o passado. E o passado remete-nos muito para a saudade, para a recordação e para sentimentos de pertença daquilo que fomos. Daí que muitos dos visitantes do museu gostam em especial do espaço da cozinha porque desperta memórias familiares, da infância, de convívio, e de amizade. A outra sala do museu que os visitantes mais gostam é a das festas de solstício de inverno, onde estão as máscaras. Aqui, o sentimento que nasce nos visitantes é o interesse em descobrir o oculto, o que está por detrás da máscara, o mítico e o desconhecido. Estas festas de solstício de inverno fazem-se nesta região são únicas no contexto nacional. E o facto de serem únicas desperta ainda mais curiosidade e interesse.

TMN: A Concatedral de Miranda do Douro faz parte do património cultural desta região e também é gerida pelo Museu da Terra de Miranda. O que há de mais interessante para visitar na Catedral de Miranda do Douro?

C.B.P.: A Concatedral é um monumento de interesse nacional, por isso é gerido centralmente e tutelado pela Direção Regional de Cultura do Norte. O projeto da construção da Catedral de Miranda iniciou-se em 1552, após a elevação da antiga Vila de Miranda à categoria de cidade e de sede de diocese. E isso fez de Miranda do
Douro um centro religioso, espiritual, cultural e económico importantíssimo, desde 1545 até 1780. Este enquadramento histórico e todo o património associado à
Concatedral é um património que deve ser preservado, valorizado e divulgado. Atualmente, o Museu gere também a Catedral e cada dia me surpreendo mais com o valor artístico que ali existe. Para quem pretenda visitar a Catedral sugiro que preste uma particular atenção ao Altar-mor que é uma peça única no contexto europeu; o Cadeiral do Cónegos do século XVI; a escultura da Virgem do Leite, do século XV, também é belíssima; o Menino Jesus da Cartolinha, escultura do século XVII, que está associado a uma lenda da sucessão de Espanha e á defesa de Miranda; o Órgão do século XVIII, com a sua carranca; e o calendário flamengo pintado por Pieter Balten cerca de 1580, que é um “tesouro nacional” constituído por 12 pinturas em madeira, evocando o quotidiano rural, o ciclo dos meses do ano.

“O projeto da construção da Catedral de Miranda iniciou-se em 1552, após a elevação da antiga vila de Miranda à categoria de cidade e de sede de diocese. E isso fez de Miranda do Douro um centro religioso, espiritual, cultural e económico importantíssimo.”

TMN: Recentemente a Concatedral foi um dos monumentos que receberam o Travelers’ Choice Best of the Best 2020 do TripAdvisor. Pode dizer-se que a antiga Sé Catedral é a principal atração turística em Miranda do Douro?

C.B.P.: Eu diria que é a principal atração turística em Trás-os-Montes, porque é o espaço mais visitado em toda a região. No ano 2019, tivemos cerca de 80 mil visitantes, um número relevante considerando o território em questão. Portanto, se é um espaço muito visitado é porque as pessoas valorizam e gostam do acolhimento e do valor histórico e artístico que a Catedral representa.

TMN: O Museu Terra de Miranda tem também a missão de participar no processo educativo, sensibilizando as pessoas para a preservação e a promoção do património cultural desta região. Que iniciativas realizam no âmbito educativo?

C.B.P.: No processo educativo não-formal, em articulação com as escolas, a nossa missão é transmitir aos jovens o conhecimento da vivência social das nossas comunidades. O programa educativo do Museu da Terra de Miranda tem centrado a sua ação na apresentação de coleções que ajudem a consciencializar sobre a importância de preservar e divulgar o património cultural e impulsionar a
criatividade. A pertinência de um serviço educativo nas instituições museológicas é hoje em dia um facto incontestável e os museus começaram a fazer parte das
instituições educadoras.

“No processo educativo não-formal, em articulação com as escolas, a nossa missão é transmitir aos jovens o conhecimento da vivência social das nossas comunidades.”


TMN: O Museu da Terra de Miranda vai ser ampliado, dado que recentemente foi adquirido o edifício contíguo para esse fim. Para quê esta ampliação? Que novidades vão ser apresentadas com a ampliação do Museu?

C.B.P.: O atual espaço do museu é um edifício histórico, belíssimo, do século XVII, sendo que aqui funcionou a antiga Câmara Municipal e a cadeia. Contudo este espaço
apresenta muitas limitações físicas e estruturais. As salas são muito pequenas e isso traz muitas limitações para que possamos cumprir a nossa missão para a exposição
do discurso museológico. Futuramente, com as novas instalações, e numa primeira fase vão ser criados serviços técnicos, administrativos, instalações sanitárias e um
elevador que permita a visita de pessoas com mobilidade condicionada. Estes novos espaços são fundamentais para acolher melhor os visitantes. Posteriormente e no
que concerne à ampliação do Museu da Terra de Miranda vão ser introduzidos novos conteúdos museológicos, e destacar, também a importância da mulher neste
território. A mulher teve sempre um papel muito importante na educação dos filhos, no trabalho do campo, ao acompanhar o marido para todo o lado, era cozinheira, costureira, gestora da casa, etc.; queremos também introduzir no museu a parte imaterial das romarias; da economia; da transformação social desta região, temas como as construções das barragens, etc. Portanto, queremos introduzir novos conteúdos que ainda não estão representados no museu.

“Vamos destacar a importância da mulher neste território. A mulher teve sempre um papel muito importante na educação dos filhos, no trabalho do campo, ao acompanhar o marido para todo o lado, era cozinheira, costureira, gestora da casa, etc.”

TMN: Qual é o perfil das pessoas que vêm conhecer o Museu da Terra de Miranda? São portugueses? São estrangeiros? E de que nacionalidades?

C.B.P.: Recebemos anualmente turistas de todas as partes do mundo, com predominância para os portugueses, espanhóis e também ingleses. Estas são as três
nacionalidades que mais visitam o Museu da Terra de Miranda e a Catedral. Tenho vindo a notar que, quanto mais distante, diferente e desconhecido é o território, mais interesse desperta nas pessoas, e mais intencional torna a sua escolha. E nesta fase da pandemia que estamos a viver, esta tendência para visitar regiões mais
periféricas, como e a Terra de Miranda, acentua-se ainda mais.

TMN: O fundador do Museu da Terra de Miranda, o Padre António Maria Mourinho, apercebeu-se de que, ao preservar e divulgar a identidade cultural desta região estava também a contribuir para o seu desenvolvimento cultural, social, económico. O que pode fazer cada cidadão para preservar e promover a Terra de Miranda?

C.B.P.: Os cidadãos são o bem maior da identidade cultural, sem eles nada existiria, e por isso, considero que cada cidadão, cada mirandês, deve sentir-se responsável pelo seu território e participar na construção da sua identidade. Parafraseando Tolentino Mendonça: “A raiz da civilização é a comunidade. É na comunidade que a nossa história começa.”

HA

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