História: A importância estratégica do castelo de Algoso
Algoso é a aldeia mais a sul do concelho de Vimioso. O castelo do século XII é a sua principal atração, tendo sido construído a uma altitude de 681 metros, num lugar deslumbrante e a partir do qual se avista quase todo o nordeste transmontano.
A história do castelo de Algoso remonta ao século XII, ainda durante o reinado de Afonso Henriques e portanto está ligado à fundação de Portugal. Segundo as Inquirições de 1258, o castelo terá sido construído por Mendo Rufino e posteriormente foi cedido a D. Sancho I em troca da vizinha povoação de Vimioso. O texto das inquirições acrescenta que na sequência dessa permuta, o castelo de Algoso foi elevado pelo rei à condição de “cabeça” da Terra de Miranda.
Naquele tempo, o representante do rei que arrecadava os direitos reais residia em Algoso, localidade central na então designada Terra de Miranda.
Na Idade Média, a denominação “Terra”, significava distrito administrativo, militar e judicial.
A designação medieval “Terra de Miranda” referia-se a um território que corresponderia ao espaço geográfico entre os rios Sabor e Douro.
Para se ter uma ideia, atualmente o território da Terra de Miranda ocuparia a área dos concelhos de Miranda do Douro, Mogadouro, Vimioso, parte de Bragança e de Freixo de Espada à Cinta.
Pensa-se que o papel que o castelo de Algoso passou então a deter na organização administrativa e militar da região o tenha convertido num alvo. Por essa razão, em 1212, durante a guerra civil entre Afonso II e as suas irmãs Teresa e Sancha, o castelo de Algoso foi um dos que foi atacado e conquistado por Afonso IX de Leão, aliado das Infantas.
Em 1224, já no reinado de Sancho II, o castelo de Algoso foi entregue pelo rei à Ordem do Hospital, instituição nascida da Síria e Palestina, em finais do século XI.
Devido à sua importância estratégica, durante o reinado de D. Dinis (1279-1325), o castelo de Algoso recebeu importantes obras de melhoramento. Estas obras fizeram do castelo aquilo que é hoje: um pequeno perímetro amuralhado de planta irregular, com três torres, sendo que a torre de menagem ou principal tem uma base hexagonal.
A fortaleza apresenta apenas uma porta a que se acede por uma escadaria talhada na rocha na face norte da torre. Por se localizar numa zona onde não existiam fontes de água, o castelo estava equipado com duas cisternas, das quais ainda subsistem alguns vestígios.
Em articulação com os castelos de Penas Roias, Mogadouro, Outeiro e Miranda, o castelo de Algoso tinha uma importância estratégica na vigilância e defesa no nordeste transmontano. Recorde-se que no início da nacionalidade, esta fronteira era motivo de constante conflito e de batalhas.
Bem próximo da fronteira localiza-se a vila espanhola de Alcanices, onde a 12 de setembro de 1297 foi assinado um tratado de paz, pelo rei D. Dinis e pelo rei de Leão e Castela, Fernando IV, definindo a fronteira que ainda hoje existe entre Portugal e Espanha. Por esta razão, se diz que a fronteira terrestre luso-espanhola é a mais antiga da Europa.
Segundo reza a história, Algoso foi vila e sede de concelho, tendo recebido foral de D. Afonso V, em 1480. Contudo, em 1855, procedeu-se à extinção do concelho de Algoso, para fazer parte do atual concelho de Vimioso.
Em Algoso, para além da visita ao castelo e ao centro de interpretação, também é possível ver o pelourinho, o antigo edifício da Câmara Municipal (muito bem conservado por sinal!), a ponte romana sobre o rio Angueira e a fonte santa na capela de São João Batista.
Diz o povo que a fonte terá sido construída pelos romanos para descanso dos peregrinos que iam a caminho de Santiago de Compostela. Nas suas longas caminhadas, muitos peregrinos repousavam os pés na água e passaram a designá-la de Fonte Santa.
HA
A fonte Santa localiza-se junto à Capela de São João Batista, em Algoso.
Cultura: «A pintura também se aprende» – Balbina Mendes
Após vários meses sem mostras culturais por causa da pandemia, a Casa da Cultura de Vimiosoinaugurou a exposição de pintura “O Rosto, Máscara intemporal”, da autoria de Balbina Mendes, que pode ser visitada até 18 de julho.
A artista Balbina Mendes apresentou a coleção “O rosto, máscara intemporal”
A apresentação da exposição realizou-se no serão do dia 3 de junho, e estiveram presentes o presidente da Câmara Municipal de Vimioso, Jorge Fidalgo e demais membros do executivo, assim como inúmeras pessoas que puderam contemplar as obras da artista plástica, ao som do grupo musical “Hardança” e da interpretação poética de Duarte Martins.
Terra de Miranda – Notícias: Balbina Mendes nasceu em 1955, em Malhadas, Miranda do Douro. Quando descobriu o gosto pela pintura?
Balbina Mendes: Sempre tive uma aptidão natural para a imagem e as artes visuais. E quando tive oportunidade aprofundei os conhecimentos sobre a pintura, o que se revelou muito importante, pois a pintura também se aprende. E assim, o que inicialmente era uma tendência e uma vontade de pintar, hoje é algo mais pensado e assente no conhecimento.
T.M.N.: Decidiu estudar e concluiu um Mestrado em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP). O que se aprende na Faculdade de Belas Artes?
B.M.: Na faculdade de Belas Artes, no Porto, aprendi muito porque tive professores de excelência. E também aprendi muito com os colegas. Para além disso, o ambiente académico exige o trabalho de investigação, onde me confrontei e analisei outras linguagens e abordagens, o que foi muito importante. Em suma, a pintura também se aprende, também se estuda e é assim que se evolui nesta área.
T.M.N.: Em 1989, no Porto, mostrou pela primeira vez os seus trabalhos numa exposição coletiva, que viria a ser um êxito. Foi esta exposição que a motivou a enveredar pela carreira artística?
B.M.: Sim, foi a minha primeira participação como artista autodidata numa exposição coletiva com outros artistas. Correu muito bem, o que me deu ânimo para continuar. Depois, em 1995, fiz a primeira exposição individual, no centro Paulo Quintela, em Bragança.
T.M.N.: Atualmente Balbina Mendes dedica-se em exclusivo à pintura. Mas antes foi professora, é assim?
B.M.: Sim, fui professora do primeiro ciclo e trabalhei com crianças durante muitos anos. Foi uma experiência muito enriquecedora, porque as crianças são muito criativas e aprende-se muito com elas. Algumas destas crianças, antigos alunos com quem mantenho contato, dizem-me que optaram pela carreira artística, inspirados pelas exposições, pelos ateliers de artistas e práticas de arte dramáticas que realizámos na escola. É gratificante saber isso.
T.M.N.: Para se dedicar por inteiro à pintura teve que deixar o ensino?
B.M.: Sim, não era possível compatibilizar as duas atividades. Na altura, já tinha idade e tempo de serviço suficiente para sair do ensino com alguma tranquilidade financeira, o que me permite dedicar-me por inteiro à pintura.
T.M.N.: Que exposição éesta“O Rosto, Máscara Intemporal”?
B.M.: Esta exposição é uma evolução do processo dedicado às máscaras. A primeira máscara que pintei foi a máscara medonha do chocalheiro de Bemposta. Essa primeira pintura deu aso a que pintasse as quarenta máscaras dos rituais de inverno de Trás-os-Montes e Alto Douro. A atual exposição “Rosto, Máscara Intemporal” é uma evolução e significa que o conceito “máscara” não tem tempo, não tem limite, não esgota. É, portanto, um manancial.
T.M.N.: Esta coleção intima-nos a ver. Nestas pinturas sobressai o olhar?
B.M.: Sim, esta exposição é diferente. Eu senti necessidade de agarrar o olhar do representado, uma vez que ele está atrás de uma máscara. E esse olhar comunica com o interlocutor, com o público, confrontando-o. Curiosamente, é pelo olhar que eu começo cada pintura. Se eu conseguir que aquele olhar comunique comigo, eu avanço com a pintura. Se não, se aquele olhar ficar insípido ou desviado não avanço e recomeço outra pintura. É importante que o olhar do mascarado comunique com quem o está a ver.
T.M.N.: Tem realizado muitas exposições do seu trabalho em Trás-os-Montes. Sente-se acarinhada pelos transmontanos?
B.M.: Sim, sinto-me muito acarinhada. Creio que já expus em todas as cidades e vilas transmontanas. A minha pintura, por norma, é facilmente interpretável. Esta nova coleção, talvez nem tanto e por isso, em algumas das pinturas coloquei uma pequena memória descritiva para ajudar as pessoas nessa interpretação. Está programado que esta série de pinturas seja exibida em todas as cidades e vilas transmontanas, até 2023.
Até 18 de julho, a exposição “O Rosto, Máscara Intemporal” pode ser visitada na Casa da Cultura de Vimioso, de segunda a sexta-feira, das 9h00 às 12h30 e das 13h30 às 17h00. Aos sábados, Domingos e feriados o horário de visita é das 14h30 às 17h30 horas.
Perfil:
Balbina Mendes, artista plástica
Nasceu em 1955, em Malhadas (Miranda do Douro). Concluiu um mestrado em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Reside e tem atelier em Vila Nova de Gaia. Realizou diversas exposições individuais em Portugal e no estrangeiro. Participou em inúmeras exposições coletivas. Para mais informação consultar: www.balbinamendes.com
Os Pauliteiros de Malhadas têm mais de 100 anos! Ao longo de gerações e gerações, estes grupos de dança tradicional foram exclusivamente constituídos por homens. Mais recentemente e graças à ousadia das mulheres, a dança tradicional dos pauliteiros ganhou uma nova vida, pois as pauliteiras vieram acrescentar alegria e cor à cultura da Terra de Miranda.
As pauliteiras de Malhadas. (PM)
O pai, Hélder Igreja, sempre achou que a dança dos pauliteiros era coisa de homens. Até ao dia, em que foram chamados para uma atuação inesperada, em Moura, no Alentejo. Para a dita atuação havia sete pauliteiros disponíveis. Mas faltava um para completar a formação de oito. A filha, Micaela Igreja, que já participava no trio musical, ao tocar gaita-de-foles, disse: “Eu danço!”. Dançou na posição de guia e dançou muito bem! Foi graças à dança da Micaela que o pai começou a ensaiar o primeiro grupo de pauliteiras de Malhadas. E já lá vão 11 anos! A dançar!
Enquanto a dança dos rapazes é enérgica e os paus batem-se com mais força. A dança das raparigas é mais graciosa e elegante. Por vezes, eles e elas dançam juntos. E entendem-se bem. Nos ensaios, quando falta alguém é normal ver um pauliteiro ou uma pauliteira a dançar no outro grupo. Até porque, dizem, os “llaços”, ou seja, as músicas, são as mesmas. Os pauliteiros são tão estimados na aldeia, que lhes dedicaram mesmo uma escultura em ferro, feita com materiais agrícolas e que se encontra exposta num dos largos da aldeia, a que chamam, o largo do pauliteiro. O renovado interesse por esta dança tradicional é tal, que até as crianças já dançam nos grupos dos “pauliteiricos”.
“Enquanto a dança dos rapazes é enérgica e os paus batem-se com mais força. A dança das raparigas é mais graciosa e elegante.”
https://youtu.be/cqaNnoTDfLE
O(a)s Pauliteiro(a)s são um grupo constituído por 8 dançadore(a)s, cada qual com a sua posição: 4 guias nas pontas (duas direitas e duas esquerdas); e 4 peões no meio (dois direitos e dois esquerdos). É o guia direito, mais perto do trio tocador, quem comanda o grupo.
Tornam-se pauliteiras e conhecem o mundo!
Com a dança, as jovens pauliteiras têm a possibilidade de, em grupo, conhecerem outros países e culturas. Entre as muitas viagens e atuações já realizadas, o Hélder destacou, por exemplo, a viagem à Venezuela. Ao longo de 10 dias, dançaram em locais como a embaixada de Portugal, a Praça Simon Bolívar ou o Centro Cultural de Caracas. Aí, conhecerem muitos emigrantes portugueses, sobretudo da Madeira e da região de Leiria. E até na longínqua Venezuela vieram a descobrir que se estava a formar um grupo de pauliteiros!
Para a Micaela, o mais gratificante nestas viagens é a oportunidade de mostrar a cultura da sua terra noutros lugares. Sobre estas viagens, diz que gostou de todas. Mas destacou Macau, pela oportunidade em conhecer outro continente. Disse que também gostou de ir a França. E em Portugal, recordou a viagem a Viana do Castelo, onde tiveram a possibilidade de ficar vários dias, o que lhes deu permitiu conhecer a região.
“Para a Micaela, o mais gratificante nestas viagens é a oportunidade de mostrar a cultura da sua terra noutros lugares.”
É viajando que nos visitam
A atuação dos pauliteiras noutros países e regiões acaba por trazer ganhos para a Terra de Miranda. Um bom exemplo são as capas de honra mirandesas. As pauliteiras dizem que quando usam as capas de honra, as pessoas ficam curiosas e muitas decidem comprar estas (e outras) peças de artesanato. Também há pessoas que decidem visitar a Terra de Miranda. E quando cá chegam descobrem que a cultura mirandesa não é só a dança dos pauliteiros e a música, é também a gastronomia, o artesanato, o património histórico, a língua, a natureza, as raças autóctones, os usos e costumes e sobretudo as gentes.
“A cultura mirandesa não é só a dança dos pauliteiros e a música, é também a gastronomia, o artesanato, o património histórico, a língua, a natureza, as raças autóctones, os usos e costumes e sobretudo as gentes.”
O(a)s pauliteiro(a)s dão vida à Terra de Miranda
Para além de embaixadores noutros países e regiões, os pauliteiros e as pauliteiras de Malhadas também são ótimos anfitriões para quem nos visita. Na cidade de Miranda do Douro, por exemplo, e à semelhança do que fazem os outros grupos de pauliteiros do concelho, é usual vê-las na receção aos turistas e na animação das ruas da cidade. Para além disso, são convidadas para atuar nas festas locais e regionais, em feiras temáticas, em casamentos, batizados e outras festividades. Para responder a todos estes convites, a associação cultural e recreativa de Malhadas adquiriu recentemente um novo transporte próprio, o que lhes facilita as deslocações.
“Na cidade de Miranda do Douro, por exemplo, e à semelhança do que fazem os outros grupos de pauliteiros do concelho, é usual vê-las na receção aos turistas e na animação das ruas da cidade.”
A associação cultural e recreativa
As pauliteiras e os pauliteiros de Malhadas fazem parte da Associação Cultural e Recreativa – Todas. Tal como acontece com a maioria das associações locais, também esta coletividade é um espaço de encontro, de convívio e de dinamização de atividades. Segundo Victor Córdova, presidente da associação, todos participam, direta ou indiretamente nas atividades. Sejam os filhos, os pais e mesmo os avós. É indiscutível que os pauliteiros e as pauliteiras de Malhadas são os grupos mais conhecidos da associação local. Contudo, o dinamismo desta coletividade deve-se também ao contributo de outros grupos, como são o grupo da gastronomia, o do teatro e o grupo das caminhadas.
No dia de Páscoa, por exemplo, o grupo de gastronomia confeciona o folar comunitário e os sodos (são os conhecidos bolos económicos) para partilhar com toda a comunidade. Reza a tradição, que após a missa da Ressurreição do Senhor, são benzidos pelo senhor padre, para depois serem oferecidos no adro da igreja, num ambiente de convívio e de confraternização.
Outra atividade, promovida pela associação cultural e recreativa, é organizada pelo grupo das caminhadas. No primeiro Domingo de maio, já é tradição caminhar até à Aldeia Nova, por ocasião da festa de São João das Arribas. No decorrer desta peregrinação comunitária, os participantes para além de contemplarem a beleza das paisagens, no planalto mirandês, aprendem também a conhecer a flora e a fauna da região.
No mês de agosto, a associação realiza o festival de folclore de Malhadas, que conta habitualmente com a atuação de grupos nacionais e internacionais, e que em conjunto com os pauliteiros e as pauliteiras locais, embelezam a festa da aldeia.
São todas estas atividades, por norma realizadas em grupo, o que mais anima as pessoas a agir contra o despovoamento desta região e a acalentar a esperança de que é possível continuar a viver na Terra de Miranda.
“Tal como acontece com a maioria das associações locais, também esta coletividade é um espaço de encontro, de convívio e de dinamização de atividades. Segundo Victor Córdova, presidente da associação, todos participam, direta ou indiretamente nas atividades. Sejam os filhos, os pais e mesmo os avós.”
Segundo a UNESCO, património, não é somente os monumentos e sítios, mas também as línguas, o saber-fazer, os rituais e as tradições. Há uma tradição em Águas Vivas e em São Pedro da Silva, em que os protagonistas são os roscos. Uns bolos com a forma de argola, feitos comunitariamente e que são muito apreciados por miúdos e graúdos.O que têm estes roscos de extraordinário? E porque é que as pessoas gostam tanto desta tradição? Fui à procura do sabor dos roscos e do saber da tradição.(por Hugo Anes)
A confeção dos roscos é um trabalho comunitário que gera um grande entusiasmo na aldeia. (Dilar Neto)
Giolanda, a alma dos roscos
Cheguei à aldeia de Águas Vivas e fui recebido pela Dilar Neto, a representante da junta de freguesia local. Quando soube do motivo da minha visita, levou-me ao encontro da dona Giolanda, uma senhora que no próximo mês de maio vai celebrar 92 anos! A dona Giolanda e a Dilar, representam duas gerações diferentes, mas ambas demonstram ter muito carinho à sua aldeia e às tradições. Quando lhes perguntei pela origem da festa dos roscos, vim a saber que a tradição é muito antiga. Conta-se que a festa terá começado após o recrutamento dos jovens da aldeia para uma guerra. O povo, aflito, decidiu fazer uma promessa a Deus: se os jovens regressassem sãos e salvos, organizariam uma festa em ação de graças. Ao que parece, assim aconteceu: os jovens regressaram de boa saúde e o povo decidiu cumprir a promessa. Reuniram-se, pediram-se as esmolas e a tradição começou a realizar-se, na festa de Nossa Senhora das Candeias, a 2 de fevereiro. Mais recentemente, mudaram a tradição para o Domingo gordo, dado que são as férias do carnaval e há mais jovens na aldeia. E são os jovens que organizam a festa. Em cada ano, há duas raparigas, as chamadas mordomas, que têm a missão de chamar as outras para o baile, que decorre de terça-feira a sábado, ao serão, à volta da fogueira.
Os roscos
A confeção dos tão apreciados roscos começa na quarta-feira de manhã. É um trabalho comunitário que gera um grande entusiasmo e azáfama, em toda a aldeia. Em primeiro lugar, há que reunir os ingredientes. São necessários ovos, açúcar, farinha, fermento, manteiga, gordura de porco e um pouco de aguardente para dar aroma aos roscos ou em alternativa, anis. Como ensina a dona Giolanda, para cada três dúzias de ovos, junta-se um quilo de açúcar. E quanto à farinha, houve anos em que se compraram 13 sacos, o equivalente a 150 quilos! Após reunir os ingredientes, as primeiras tarefas são: partir os ovos e preparar a massa. Esta, depois de bem amassada, vai ficar a levedar, até ao dia seguinte. Na quinta-feira, os trabalhos recomeçam bem cedo, pois é dia de colocar a massa nas formas e de as levar ao forno a lenha. A cozedura dos roscos é um trabalho que se prolonga por todo o dia. Por isso, só na sexta-feira é que os roscos estão prontos. No sábado à noite, os jovens mordomos organizam uma pequena festa para a juventude, com o propósito de escolher os “perneiros”. Os “perneiros” são os cinco rapazes que, pela sua generosidade na esmola, vão ter a honra de, no dia da festa, transportar os andores de Nossa Senhora das Candeias e o andor com os roscos.
Chegados ao dia da festa, o Domingo começa com a celebração da Missa. No decorrer da celebração expõe-se o andor ornamentado com os roscos. No final da celebração, o andor é colocado no átrio da Igreja, onde os rapazes o apregoam. O leilão só acontece à meia-noite, na casa do povo. A dona Giolanda diz que, houve anos, em que a venda dos roscos deu uma receita de 600 contos!
Dilar Neto e a Sra. Giolanda explicam o carinho que têm pela tradição dos roscos (HA)
Os roscos no dia de Reis
Em São Pedro da Silva, a tradição dos roscos coincide com o Dia de Reis, que se celebra a seis de janeiro. Também aqui a tradição é organizada pelos jovens solteiros. Cabe assim a duas raparigas e um rapaz, serem os mordomos da festa. No entanto, esta tradição corre o risco de cair no esquecimento. O êxodo dos jovens para as cidades põe em causa a sua continuidade. Segundo Alfredo Cameirão, natural da aldeia e professor, a festa dos Reis era um dos momentos mais importantes da aldeia. “Era uma festa muito querida. Mas, devido ao despovoamento e ao envelhecimento da população, de modo muito expressivo em São Pedro da Silva, a tradição não se fez por vários anos.”. Ainda assim, a chegada do padre Rufino à paróquia trouxe um novo ânimo às pessoas. “Em São Pedro da Silva, sempre houve uma tradição muito fervorosa à volta do dia de Reis. Quando assumi a paróquia de São Pedro da Silva, a tradição estava a ser esquecida, já não estavam a celebrar o dia de Reis nem a confecionar os roscos. E ao escutar as pessoas, animei-as a recuperar a tradição.” Desde então, a comissão fabriqueira da paróquia decidiu organizar novamente a festa e voltaram a confecionar-se os roscos no dia de Reis!
Há a destacar que neste trabalho, as senhoras são as primeiras as arregaçar as mangas. Elisabete Esteves e a senhora Albertina de São Pedro, descreveram como preparam a festa. Dois dias antes, realizam o peditório pela aldeia, para recolher os ingredientes. Pedem-se ovos, farinha, manteiga, leite, aguardente, açúcar e fermento. Depois, distribuem-se as tarefas. Há que bater uma grande quantidade de ovos e misturá-los com o açúcar, até ficar no ponto. Há também que preparar a massa. Depois, as chamadas “feiteiras” colocam a massa nas formas. E ao que parece, os roscos assumem vários formatos. “Desde os utensílios da agricultura, como o arado, uma escada e até o padre a celebrar a Missa serve de inspiração para dar forma aos roscos!” – gracejou o padre Rufino. Na confeção dos roscos, há também que zelar pelo forno a lenha. Quando os roscos já estão cozidos, tiram-se do forno e adiciona-se-lhes um creme. Antigamente, os roscos eram pincelados com a gema do ovo. Mas agora, em São Pedro da Silva, em vez gema do ovo adicionam-lhe um creme de açúcar. Outra tarefa importante e original é esfregar as formas, que curiosamente, são as tampas das latas de tinta! Todo este trabalho comunitário, só está concluído ao final do dia.
No dia seguinte, sábado, é chegado o momento de ornamentar o andor com os roscos. Segundo, o padre Rufino, este é um trabalho que exige muita técnica, pelo que é importante que se transmita este saber às gerações mais novas.
Na noite de sábado, os mordomos percorrem as ruas da aldeia a convidar as pessoas para a degustação das “claras”. As claras são uns roscos pequeninos, feitos propositadamente para convencer as pessoas a comprar os roscos no dia da festa.
Chegados ao dia de Domingo, começa a festa! A celebração da missa é cantada, há a adoração do Menino Jesus e também a bênção do andor com os roscos. No final da celebração traz-se o andor para o adro da igreja, onde é leiloado. Depois, transporta-se o andor dos roscos para o salão da casa do povo, onde se desfaz: os roscos da parte superior destinam-se aos mordomos do próximo ano. O senhor padre também é presenteado com um desses roscos. E os restantes são para vender. Cada rosco custa 6 euros. A Elisabete e a senhora Albertina dizem que se vende tudo rapidamente!
Ao jantar, tradicionalmente come-se o butelo com as cascas. E a festa continua com o baile, que decorre no salão da casa do povo, onde por vezes, quase não se cabe, tanta é a afluência de gente!
A receita
Nesta tradição dos roscos, o que mais chama à atenção é a participação de toda a aldeia na preparação da festa. Há quem ofereça os ingredientes, como os ovos, a farinha ou o açúcar. Outros, arregaçam as mangas e dedicam-se ao trabalho, de partir os ovos, amassar a massa ou ficar responsáveis pelo forno. Há também quem venha à festa só para comprar os roscos.
A participação de toda a comunidade é, afinal, o que torna esta tradição tão querida em cada aldeia. Sob o pretexto da confeção dos roscos, as pessoas aproximam-se, convivem, trabalham juntas, rezam, comem, dançam, cantam, e assim estão a aprofundar o sentido de pertença à sua aldeia e a transmitir às novas gerações a sabedoria das suas tradições.
Quanto ao sabor dos roscos, há que seguir a receita:
Ingredientes utilizados: Ovos, gorduras (manteiga e azeite), açúcar, farinha, leite, aguardente, fermento em pó e bicarbonato de soda e anis.
Modo de preparação: Misturam-se os ovos com o açúcar e vão-se misturando os restantes ingredientes mexendo muito bem, por fim vai-se deitando a farinha até a massa ficar dura, de forma a se poder moldar e deixa-se repousar durante 1 hora. Seguidamente molda-se a massa com as mãos e coloca-se em tabuleiros, estes bolos apresentam-se de várias formas (formato de circulo, letras, entre outros formatos) e pincelam-se com gemas de ovos. Depois disso vão a cozer no forno de lenha, durante aproximadamente 20 minutos.
E juntar-lhe uma boa dose de partilha, de entreajuda e de amor, para que tudo tenha mais sabor!
Celina Bárbaro Pinto:«Nos meios mais rurais, o sentido de identidade e de pertença é muito forte, porque as relações são mais próximas.»
Celina Bárbaro Pinto começou a trabalhar no Museu da Terra de Miranda, aos 18 anos. Seguiram-se os estudos em antropologia e museologia. Hoje, é a diretora do espaço que guarda a identidade cultural desta região.
Celina Bárbaro Pinto diz que os museus são espaços e meios de aprendizagem (HA)
Terra de Miranda Notícias: O Museu Terra de Miranda foi fundado a 23 de abril de 1982 e abriu ao público a 18 de maio do mesmo ano. Qual é a origem do nome “Terra de Miranda”?
Celina Bárbaro Pinto: A Terra de Miranda, grosso modo é o território compreendido entre os rios Douro e Sabor. No livro “As terras entre Douro e Sabor” (1904) faz-se referência, sobretudo, ás caraterísticas geográficas e morfológicas deste território, onde os rios surgem como barreiras (de)limitadoras. Para além disso, há vários autores, como por exemplo, José Leite de Vasconcelos que afirmou que as caraterísticas comuns desse espaço, também podem ser culturais e linguísticas. Se bem que o mirandês se fala nalgumas aldeias e noutras não, assim como há aspetos culturais comuns numas aldeias e noutras não. Mas, as caraterísticas geográficas e morfológicas são comuns a todo este território a que se chama “Terra de Miranda”. Esta designação “Terra de Miranda” já vem do século XII, ou seja, desde a Idade Média. Possivelmente este território terá sido doado, nessa altura, a um terratenente, um representante do Rei, que foi mandado para esta região para governar estas terras. Atualmente, é um conceito “menos” aplicado, talvez pelo facto de erradamente e muitas vezes ser apenas associada a “Terra de Miranda” ao concelho de Miranda do Douro, o que é um equívoco. Assim, como existem as designações Terras de Bouro, Terras do Barroso, Terras de Basto, Terras do Xisto, Terras de Lafões, etc. Portanto, Terra de Miranda não é só o concelho de Miranda, é um território mais vasto. A designação Terra de Miranda dá uma identidade maior e comum a esta região. E depois há as caraterísticas próprias de cada concelho, de Vimioso, de Mogadouro e de Miranda do Douro. Ninguém retira protagonismo a ninguém. Pelo contrário, quanto mais unidos estivermos, mais fortes seremos. E nesta região já somos tão poucos, não podemos dividir-nos.
TMN: O Museu Terra de Miranda é um museu etnográfico pois dedica-se ao estudo da cultura desta região. O que se pode ver e aprender no Museu da Terra de Miranda?
C.B.P.: Dentro deste espaço físico que é o museu pretendemos representar um espaço maior que é a Terra de Miranda. O próprio nome do museu remete o visitante para um contexto geográfico. As salas que apresentam o museu pretendem ser mais do que espaços estáticos, onde se mostram os objetos que representam uma cultura. E os objetos não são meros artefactos que remetem para informações como o nome, a datação ou a utilidade do mesmo. Cada objeto, e cada instrumento transmitem-nos conhecimentos e remete-nos para um ambiente social. É por isso que os museus são espaços e meios de aprendizagem. Para além da recolha e exposição de objetos caráter etnográfico e etnográfico, o Museu da Terra de Miranda também interpreta a forma de estar e de ser da gente desta região. Para isso, recolhem-se também os conhecimentos e saberes, o artesanato, a língua, aspetos da economia, da religião e das crenças, da paisagem, etc. E a paisagem, também é fundamental pois determina o modo como nós nos adaptamos a este território. Por exemplo, na agricultura da Terra de Miranda, o arado romano e o trilho utilizados são diferentes dos utilizados no resto do país. Porquê? Porque os solos e o clima também são diferentes, e o agricultor teve que se adaptar á realidade do território. São estas singularidades que nos chamam à atenção. É por isso que o nosso trabalho no museu é etnográfico, isto é, procuramos entender como é que o homem vive num determinado espaço e tempo. E no âmbito antropológico, procuramos analisar, compreender e interpretar estes diversos modos de vida. Hoje em dia, um museu é um elemento fundamental não só na transmissão e preservação de conhecimentos, como também na dinamização social e cultural de uma região.
TMN: Ao longo dos anos quais foram as maiores transformações que se operaram na vida social, cultural, religiosa e económica das gentes da Terra de Miranda? Atualmente, o que ainda permanece dos tempos antigos?
C.B.P.: A primeira grande transformação aconteceu com a emigração nos anos 60/70 seguida da mecanização da agricultura que se iniciou nos anos 70. Depois seguiu-se a construção das barragens de Picote, Bemposta e Miranda do Douro na década de 60 e a consequente abertura da fronteira com a vizinha Espanha, já posteriormente a entrada de Portugal na CEE, em 1985. Estes foram certamente os acontecimentos que mais terão contribuído para a abertura da região e contribuíram, grosso modo, para o seu desenvolvimento e transformação social, económico e cultural. O que permanece? Os usos, os costumes, a forma de ser, de estar e de pensar, que se manifesta depois em aspetos como, a música, os colóquios, o folclore, os rituais, a dança dos Pauliteiros, a língua, os saberes, etc, etc… E a língua tem uma importância maior porque se manifesta em todos os contextos, é o meio de comunicação fundamental e transversal a toda e qualquer ação do homem. Realço que no meio rural, o sentido de identidade e de pertença é muito forte e é por isso que se mantêm estas caraterísticas. Onde é que há tradições? Não é nos grandes centros, é nas localidades mais pequenas, nos meios mais rurais, porque é aí que há um maior sentido de identidade comum, porque as relações são mais próximas, porque convivemos mais, porque a comunidade é transmissora destes conhecimentos. Ao passo que nas cidades, essa relação de proximidade dilui-se e o conceito de comunidade é diferente.
“Nos meios mais rurais, há um maior sentido de identidade comum, porque as relações são mais próximas, porque convivemos mais, porque a comunidade é transmissora destes conhecimentos. Ao passo que nas cidades, essa relação de proximidade dilui-se e o conceito de comunidade é diferente.”
TMN: Na exposição permanente do Museu da Terra de Miranda é possível conhecer as expressões culturais caraterísticas desta região, em vários âmbitos, como são a habitação, o vestuário, o calçado, os instrumentos de trabalho, etc.. O que chama mais à atenção dos visitantes?
C.B.P.: Os museus etnográficos têm uma forte relação com o passado. E o passado remete-nos muito para a saudade, para a recordação e para sentimentos de pertença daquilo que fomos. Daí que muitos dos visitantes do museu gostam em especial do espaço da cozinha porque desperta memórias familiares, da infância, de convívio, e de amizade. A outra sala do museu que os visitantes mais gostam é a das festas de solstício de inverno, onde estão as máscaras. Aqui, o sentimento que nasce nos visitantes é o interesse em descobrir o oculto, o que está por detrás da máscara, o mítico e o desconhecido. Estas festas de solstício de inverno fazem-se nesta região são únicas no contexto nacional. E o facto de serem únicas desperta ainda mais curiosidade e interesse.
TMN: A Concatedral de Miranda do Douro faz parte do património cultural desta região e também é gerida pelo Museu da Terra de Miranda. O que há de mais interessante para visitar na Catedral de Miranda do Douro?
C.B.P.: A Concatedral é um monumento de interesse nacional, por isso é gerido centralmente e tutelado pela Direção Regional de Cultura do Norte. O projeto da construção da Catedral de Miranda iniciou-se em 1552, após a elevação da antiga Vila de Miranda à categoria de cidade e de sede de diocese. E isso fez de Miranda do Douro um centro religioso, espiritual, cultural e económico importantíssimo, desde 1545 até 1780. Este enquadramento histórico e todo o património associado à Concatedral é um património que deve ser preservado, valorizado e divulgado. Atualmente, o Museu gere também a Catedral e cada dia me surpreendo mais com o valor artístico que ali existe. Para quem pretenda visitar a Catedral sugiro que preste uma particular atenção ao Altar-mor que é uma peça única no contexto europeu; o Cadeiral do Cónegos do século XVI; a escultura da Virgem do Leite, do século XV, também é belíssima; o Menino Jesus da Cartolinha, escultura do século XVII, que está associado a uma lenda da sucessão de Espanha e á defesa de Miranda; o Órgão do século XVIII, com a sua carranca; e o calendário flamengo pintado por Pieter Balten cerca de 1580, que é um “tesouro nacional” constituído por 12 pinturas em madeira, evocando o quotidiano rural, o ciclo dos meses do ano.
“O projeto da construção da Catedral de Miranda iniciou-se em 1552, após a elevação da antiga vila de Miranda à categoria de cidade e de sede de diocese. E isso fez de Miranda do Douro um centro religioso, espiritual, cultural e económico importantíssimo.”
TMN: Recentemente a Concatedral foi um dos monumentos que receberam o Travelers’ Choice Best of the Best 2020 do TripAdvisor. Pode dizer-se que a antiga Sé Catedral é a principal atração turística em Miranda do Douro?
C.B.P.: Eu diria que é a principal atração turística em Trás-os-Montes, porque é o espaço mais visitado em toda a região. No ano 2019, tivemos cerca de 80 mil visitantes, um número relevante considerando o território em questão. Portanto, se é um espaço muito visitado é porque as pessoas valorizam e gostam do acolhimento e do valor histórico e artístico que a Catedral representa.
TMN: O Museu Terra de Miranda tem também a missão de participar no processo educativo, sensibilizando as pessoas para a preservação e a promoção do património cultural desta região. Que iniciativas realizam no âmbito educativo?
C.B.P.: No processo educativo não-formal, em articulação com as escolas, a nossa missão é transmitir aos jovens o conhecimento da vivência social das nossas comunidades. O programa educativo do Museu da Terra de Miranda tem centrado a sua ação na apresentação de coleções que ajudem a consciencializar sobre a importância de preservar e divulgar o património cultural e impulsionar a criatividade. A pertinência de um serviço educativo nas instituições museológicas é hoje em dia um facto incontestável e os museus começaram a fazer parte das instituições educadoras.
“No processo educativo não-formal, em articulação com as escolas, a nossa missão é transmitir aos jovens o conhecimento da vivência social das nossas comunidades.”
TMN: O Museu da Terra de Miranda vai ser ampliado, dado que recentemente foi adquirido o edifício contíguo para esse fim. Para quê esta ampliação? Que novidades vão ser apresentadas com a ampliação do Museu?
C.B.P.: O atual espaço do museu é um edifício histórico, belíssimo, do século XVII, sendo que aqui funcionou a antiga Câmara Municipal e a cadeia. Contudo este espaço apresenta muitas limitações físicas e estruturais. As salas são muito pequenas e isso traz muitas limitações para que possamos cumprir a nossa missão para a exposição do discurso museológico. Futuramente, com as novas instalações, e numa primeira fase vão ser criados serviços técnicos, administrativos, instalações sanitárias e um elevador que permita a visita de pessoas com mobilidade condicionada. Estes novos espaços são fundamentais para acolher melhor os visitantes. Posteriormente e no que concerne à ampliação do Museu da Terra de Miranda vão ser introduzidos novos conteúdos museológicos, e destacar, também a importância da mulher neste território. A mulher teve sempre um papel muito importante na educação dos filhos, no trabalho do campo, ao acompanhar o marido para todo o lado, era cozinheira, costureira, gestora da casa, etc.; queremos também introduzir no museu a parte imaterial das romarias; da economia; da transformação social desta região, temas como as construções das barragens, etc. Portanto, queremos introduzir novos conteúdos que ainda não estão representados no museu.
“Vamos destacar a importância da mulher neste território. A mulher teve sempre um papel muito importante na educação dos filhos, no trabalho do campo, ao acompanhar o marido para todo o lado, era cozinheira, costureira, gestora da casa, etc.”
TMN: Qual é o perfil das pessoas que vêm conhecer o Museu da Terra de Miranda? São portugueses? São estrangeiros? E de que nacionalidades?
C.B.P.: Recebemos anualmente turistas de todas as partes do mundo, com predominância para os portugueses, espanhóis e também ingleses. Estas são as três nacionalidades que mais visitam o Museu da Terra de Miranda e a Catedral. Tenho vindo a notar que, quanto mais distante, diferente e desconhecido é o território, mais interesse desperta nas pessoas, e mais intencional torna a sua escolha. E nesta fase da pandemia que estamos a viver, esta tendência para visitar regiões mais periféricas, como e a Terra de Miranda, acentua-se ainda mais.
TMN: O fundador do Museu da Terra de Miranda, o Padre António Maria Mourinho, apercebeu-se de que, ao preservar e divulgar a identidade cultural desta região estava também a contribuir para o seu desenvolvimento cultural, social, económico. O que pode fazer cada cidadão para preservar e promover a Terra de Miranda?
C.B.P.: Os cidadãos são o bem maior da identidade cultural, sem eles nada existiria, e por isso, considero que cada cidadão, cada mirandês, deve sentir-se responsável pelo seu território e participar na construção da sua identidade. Parafraseando Tolentino Mendonça: “A raiz da civilização é a comunidade. É na comunidade que a nossa história começa.”
Sociedade: «Para viver no interior é preciso espírito de missão»
Paulo Meirinhos é um dos membros do grupo de música tradicional mirandesa, os Galandum Galundaina. Professor de música e artesão, viveu no Porto e decidiu mudar-se para Miranda do Douro. Diz que para realizar esta mudança é preciso espírito de missão, pois há que enfrentar as dificuldades do isolamento e da desertificação.
Paulo Meirinhos é um dos fundadores dos Galandum Galundaina
Terra de Miranda.: O grupo musical Galandum Galundaina nasceu em 1996. Ao longo dos 24 anos de existência, têm-se dedicado ao estudo, preservação e divulgação da identidade cultural da região, também conhecida como Terra de Miranda. Como realizam este estudo? Onde vão buscar esse saber? É através da transmissão oral?
Paulo Meirinhos: Sim, inicialmente recolhemos esse saber através da transmissão oral. Recordo, por exemplo, que a minha mãe nos cantava muitas das músicas que hoje são cantadas e gravadas pelos Galandum Galundaina. Também com os meus avós e vizinhos, em Duas Igrejas, ouvíamos este reportório da música tradicional. Em suma, nós nascemos e crescemos num ambiente musical. Nos últimos anos e perante o envelhecimento e o desaparecimento das pessoas que nos transmitiam esse saber, temos recorrido a outras fontes, como as recolhas musicais de tradição oral realizadas por Kurt Shindler, o etnólogo Michel Giacometti, Domingos Morais, entre outros.
T.M.: O que carateriza e distingue a música desta região?
P.M.: Há melodias que têm um sabor antigo. As músicas tradicionais mirandesas não assentam na harmonia do sol e dó. São, por isso, músicas que te entram facilmente pelo ouvido e são fáceis de aprender. Estas músicas foram transmitidas oralmente e conservaram-se durante centenas de anos, o que é também sinónimo da sua qualidade.
T.M.: Qual é a mais valia da transmissão oral?
P.M.: É importante ver a pessoa a interpretar a música. Ao ver a interpretação pessoal temos a oportunidade de registar determinados pormenores, por exemplo, o significado histórico da música. Ultimamente tenho andado a ouvir muito o Francisco dos Reis Domingues, também conhecido como o Tio Lérias, de Paradela. Ele tem uma maneira muito própria de cantar, que é muito difícil de imitar, pois ele faz uma decoração muito pessoal da melodia, que lhe foi transmitida por outros, que o precederam.
T.M.:O Paulo é professor de música e artesão. Qual é a recetividade e o interesse dos jovens pela música, pela arte e pela língua mirandesa?
P.M.: Os Galandum Galundaina começaram numa época que que havia poucos gaiteiros. Acho que o nosso contributo, ao dar modernidade à música mirandesa tradicional chamou à atenção das pessoas, especialmente, das crianças e dos jovens. Também a nossa participação em festivais e em programas da televisão, para além da visibilidade, reavivou o interesse das pessoas pela música e cultura da sua terra. Na juventude reacendeu-se o interesse por aprender a tocar os instrumentos tradicionais, como a gaita de foles. E também pela língua, o mirandês. Recordo que nos nossos concertos, temos essa preocupação de falar e cantar em mirandês. A divulgação e preservação da língua mirandesa é também a nossa missão.
T.M.: A música é o meio ideal para a divulgação e preservação da língua mirandesa?
P.M.: Sim, acho que sim. Apercebo-me de que há gente que não sabe falar mirandês, mas sabe cantar músicas mirandesas. Estou convencido que foi graças à música que a língua mirandesa sobreviveu ao longo dos anos. E também hoje, a música continua a ser o meio ideal para a preservação e divulgação do mirandês.
T.M.: Esta região continua a lutar contra a desertificação. Em 2018, o concelho de Miranda do Douro, registava cerca de 7.000 habitantes. O que o motiva a viver aqui?
P.M.: Viver nesta região é difícil. É preciso ter espírito de missão. É verdade que é uma terra bonita, com paisagens belíssimas e com pessoas extraordinárias. Mas estamos longe de tudo. Quando precisas de cuidados de saúde, és obrigado a percorrer longas distâncias. Recentemente, o meu pai teve que ser operado às cataratas e as opções que existiam eram todas no litoral. Também na educação se vive o mesmo problema. Eu tenho dois filhos, que serão obrigados a sair daqui para continuar os estudos. E quando saem, nunca mais voltam. Este êxodo das pessoas é causa de desolação. Sentimo-nos abandonados. E o único caminho para quem quer viver aqui é não baixar os braços e trabalhar para que esta região atraia pessoas. Ao longo de vários anos organizámos festivais com o objetivo de atrair pessoas, dar a conhecer esta região a quem nos visita, e proporcionar a quem aqui vive experiências de convívio e confraternização.
T.M.: Recentemente a também Associação Cultural Galandum Galundaina, integrou uma lista de associações que apresentaram um manifesto cultural chamando à atenção para as injustiças na venda das barragens pela EDP construídas nesta região do Douro superior. A intervenção cívica também é uma das missões dos Galandum Galundaina?
P.M.: Sim, há muito anos que nos envolvemos em iniciativas deste género. No caso da venda das barragens pela EDP, construídas nos concelhos de Miranda do Douro e de Mogadouro, o que está em causa é o aproveitamento dos nossos recursos, sem que depois haja retorno para a nossa região. Ou seja, é aqui que se produz a eletricidade e é nesta região que foram deixadas marcas ambientais da construção das barragens que nunca foram recuperadas. Também os impostos que deviam ser pagos aqui para a região não são pagos, são pagos sim à Câmara Municipal de Lisboa. Como tal, sentimo-nos injustiçados e por isso é um imperativo participar neste manifesto cultural. Sempre que queremos organizar uma atividade cultural, os nossos recursos são escassos. Mas depois vemos grandes festivais pelo país, que são patrocinados pela elétrica. Esperamos que este manifesto cultural tenha sucesso e que consigamos mudar um pouco o estado das coisas. Fala-se tanto da coesão territorial, mas os problemas mantêm-se: a desertificação, o envelhecimento e o empobrecimento desta região. Que este manifesto consiga trazer algum retorno financeiro, de modo apoiar medidas que invertam a situação demográfica. Gostaríamos, por exemplo, de atrair projetos, pessoas e famílias para repovoarem esta região.
Os outros membros do grupo Galandum Galundaina, Paulo Preto e Alexandre Meirinhos (Flickr)
T.M.: O Paulo é bom exemplo de alguém que viveu numa grande cidade, o Porto, e decidiu vir trabalhar no interior do país. Que medidas políticas seriam aconselháveis para motivar as pessoas a mudarem-se para o interior?
P.M.: A redução de impostos iria beneficiar muito as pessoas que vivem no interior. Recordo, uma vez mais, que quando precisamos de serviços essenciais, como são a saúde e a educação, as pessoas que aqui vivem têm que percorrer longas distâncias. Portanto, a verdade é que é caro viver no interior. Há quem pense que é barato porque toda a gente tem a sua horta, etc.. Mas, por outro lado, quando precisas de assistência na saúde e de acesso à educação és obrigado a sair do interior.
T.M.: Quem vive numa cidade o que pode trazer aos que cá vivem? E quem é do interior o que tem para oferecer?
P.M.: Na minha opinião devia haver mais trocas. Na cidade é onde se estuda e quem vem traz o conhecimento. Os que cá vivem, têm a experiência de cultivar a terra, mas depois deparam-se com o problema de não saber como escoar e vender os produtos. Para agravar a situação, o envelhecimento das pessoas e a desertificação estão a provocar o abandono da terra. O turismo tem sido apontado como uma boa estratégia para atrair gente. E no momento atual, com esta pandemia, o turismo no interior do país tem sido aconselhado, o que pode ser um contributo para o desenvolvimento local.
T.M.:Os Galandum Galundaina são um bom exemplo, de como é possível ser bem-sucedido a partir do interior do país, pois são um grupo que já construiu um estatuto nacional e internacional. Qual é a receita para ser bem-sucedido?
P.M.: Nós teríamos a vida muito facilitada se vivêssemos no Porto ou em Lisboa, porque é lá que estão os estúdios, as pessoas que organizam os festivais e as televisões. Mas ter esta presença a partir do interior do país torna-se bem mais difícil. É preciso muito sacrifício. As viagens são constantes. A maioria dos concertos também são no litoral. O que nos vale sendo originários do interior talvez seja a autenticidade. As pessoas vêem-nos como um grupo musical do interior do país, que contra-a-corrente, continua a divulgar a música tradicional. Para esta autenticidade também contribuem o falar o mirandês e o construirmos os nossos próprios instrumentos musicais – tudo isto são pormenores que nos ajudam a ser bem sucedidos.
T.M.: Como se mantém o entusiasmo e o gosto pelo trabalho musical?
P.M.: Isso não é difícil, pois todos nós queríamos ser músicos. Desde muito novos, integrámos grupos de baile, ranchos folclóricos, orquestras de jazz, etc. Recordo que eu e o meu irmão, recebemos do meu avô, uma caixa e um bombo. Juntamente com um colega que tinha uma gaita de foles, começámos a ensaiar para fazer animações em ambientes tradicionais. No Porto, tocávamos em restaurantes da ribeira. Éramos um trio: gaita, caixa e bombo, a imitar os velhos gaiteiros. Depois, a nossa presença e participação no Festival Intercéltico do Porto, onde atuam grupos de música celta de todo o mundo, abriu-nos os horizontes para outros ambientes musicais. E daí para a frente, cresceu a nossa vontade de inovar e renovar a música tradicional mirandesa, com o objetivo de chegar a novos palcos, a mais gente, sobretudo aos mais novos.
Os Galandum Galundaina são formados por: João Pratas, Paulo Meirinhos, Alexandre Meirinhos e Paulo Preto (Flickr)
T.M.: Ao longo dos 24 anos de atividade musical, os Galandum Galundaina, editaram quatro discos e um DVD. Simultaneamente realizaram milhares de concertos em Portugal e no mundo. Com a atual pandemia viram-se forçados a cancelar os concertos. O que estão a fazer neste tempo de confinamento?
P.M.: Aproveitámos este tempo de interrupção forçada para fazer muitas reuniões entre nós. Continuámos a ensaiar. E também participámos em concertos online. Estes concertos são uma experiência nova: cada qual em sua casa, eu, em Miranda do Douro, o Paulo Preto, em Bragança, o meu irmão, Alexandre Meirinhos, no Porto, e o João Pratas, em Aveiro. Todos juntos num ecrã de computador. Obviamente, que estes concertos não são a mesma coisa que as atuações ao vivo, pois sentimos a falta do convívio entre nós e com as pessoas. Neste tempo de confinamento, também estamos a preparar o próximo disco, que queremos apresentar ao público, em breve.