Entrevista: «A língua mirandesa é mais do que útil, pois é a essência de um povo» – António Bárbolo Alves
Após a sua eleição para a Academia das Ciências de Lisboa, o professor e investigador da língua mirandesa, António Bárbolo Alves, ministrou a sua primeira lição na instituição científica, no passado dia 28 de setembro, um acontecimento que é visto como um reconhecimento da sua obra académica e uma valorização da língua e cultura mirandesas.
Terra de Miranda – Notícias: Em 2022, foi eleito sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, uma das mais antigas instituições científicas nacionais. O que faz um sócio correspondente?
António Bárbolo Alves: Esta distinção é um reconhecimento do trabalho que tenho desenvolvido em prol da língua mirandesa e é sobretudo uma valorização e distinção para a nossa língua, que assim entra no “panteão” científico da Academia das Ciências de Lisboa. O compromisso dos sócios da academia das ciências é o de continuar a realizar o seu trabalho de investigação, no meu caso da língua mirandesa, na área da filologia e da linguística. Outro contributo ou dever dos sócios correspondentes é o de dar uma lição sobre a área de investigação. Foi o que fiz no passado dia 28 de setembro, em Lisboa, numa conferência com o título “You nun sou you – As teias que a língua tece”.
T.M.N.: A Academia das Ciências de Lisboa foi fundada, no dia 24 de dezembro de 1779, durante o reinado de D. Maria I, sob o lema inspirador “Se não é útil o que fazemos, vã é a glória.” Atualmente, qual é a utilidade da língua mirandesa?
A.B.A.: A língua mirandesa, como todas as outras línguas, é um sistema constituído por palavras e por regras gramaticais que permitem a construção de frases e que é usado como meio de comunicação, falado ou escrito, pelos membros de uma mesma comunidade linguística. E por isso, a língua mirandesa tem de ser vista como algo muito valioso, pois permitiu (e permite) comunicar e interagir entre as pessoas. A língua mirandesa é uma herança histórica e cultural deste território. Portanto, a língua mirandesa é mais do que útil, pois é a essência de um povo. A língua é inseparável da cultura mirandesa.
T.M.N.: António Bárbolo Alves nasceu em Picote, no ano de 1964. É professor de Português-Francês, sendo leitor (professor) do Instituto Camões na Universidade de Nice, em França. Também frequentou o curso livre de Espanhol, na Universidade do Minho. Sente-se vocacionado para os idiomas?
A.B.A.: A minha língua materna é o mirandês. O português aprendi-o depois ao iniciar a escola primária. Talvez este bilinguismo na minha infância me tenha despertado o interesse pelas línguas. O espanhol ou castelhano aprendi-o no final dos anos 80, na Universidade do Minho, quando me inscrevi num curso livre. Recordo que nessa altura, a Porto Editora queria reformular todos os dicionários e participei num grupo de trabalho que reformulou o dicionário de Espanhol – Português. Relativamente ao francês, recordo que na minha infância fiz um teste e obtive uma nota péssima. O professor de francês para além de um valente raspanete e deu-me negativa no final do primeiro período. Para demonstrar que conseguia fazer bem melhor, comecei a estudar francês e obtive boas notas no resto do ano letivo.
T.M.N.: É considerado um dos mais conceituados estudiosos e divulgadores da língua mirandesa. Em 1997, apresentou mesmo uma tese de Mestrado, na Universidade do Minho, com o título: “A língua mirandesa: contributos para o estudo da sua história e do seu léxico.” Já existem dicionários de mirandês, uma convenção ortográfica e muita literatura. No entanto, comunicar em mirandês, não é fácil. Como se aprende o mirandês?
A.B.A.: O ensino do mirandês é um problema complexo. No Agrupamento de Escolas de Miranda do Douro, por exemplo, a língua mirandesa é uma disciplina opcional e há dois professores de mirandês a tempo inteiro, o que é bom, mas é pouco para o que é necessário fazer. Recordo que quando o ensino do mirandês começou nas escolas, esta experiência pedagógica seria depois avaliada. Até hoje, essa avaliação ainda não foi feita. É importante que o mirandês passe de disciplina facultativa, para integrar o currículo, à semelhança de outras línguas como o inglês, o espanhol ou o francês.
T.M.N.: E que oferta de ensino há para os adultos?
A.B.A.: Há associações como a Associação de Língua e Cultura Mirandesa (ALCM) e a FRAUGA – Associação para a Desenvolvimento Integrado de Picote, que costumam fazer pequenos cursos de introdução à língua mirandesa.
T.M.N.: Em 2002, doutorou-se pela Universidade de Toulouse (França), com a tese de doutoramento sobre os contos da literatura oral mirandesa. A literatura é um bom veículo para divulgar o mirandês?
A.B.A.: Com a elaboração e publicação da convenção ortográfica, em 1999, verificou-se uma explosão de escritos em mirandês. Nesses anos, o padre António Maria Mourinho antevia que o estabelecimento das regras ortográficas seriam um passo decisivo para a conservação do mirandês, dada a perenidade da escrita em relação à oralidade. Hoje, em dia a convenção ortográfica precisa ser melhorada.
T.M.N.: Há portanto melhoramentos a fazer no ensino e na escrita. E no âmbito político?
A.B.A.: No âmbito político é preciso criar uma estratégia linguística ou uma política para a língua. As ações pontuais, como os cursos livres, a música, a literatura ou o teatro mirandês são importantes sim, mas tudo tem que funcionar interligado. Porque na realidade, o mirandês desapareceu como língua de comunicação quotidiana. Devemos perguntar-nos: o que é que queremos fazer com o mirandês? Porque através do mirandês também é possível comunicar no quotidiano, criar palavras novas e metaforizar o mundo.
T.M.N.: A música e o teatro também são eficazes na transmissão da língua mirandesa?
A.B.A.: A razão pela qual o mirandês ainda se conserva nesta região é porque a língua é o corpo de uma cultura. E esta cultura compreende a música, a literatura oral, as danças dos pauliteiros e o teatro popular mirandês. E se há algo que é valioso na espécie humana é a sua cultura. Por isso digo que, com o mirandês é possível falar de assuntos tão banais como telemóveis ou mais eruditos como os tratados de ciência.
T.M.N.: Um dos livros em que participou, como coordenador, foi “Lhiteratura Oural Mirandesa – Recuolha de Testos an Mirandés”. A literatura oral é uma das expressões mais interessantes do mirandês? A.B.A.: Esse trabalho foi realizado em 1999 e foi verdadeiramente simbólico porque pressupôs a participação das pessoas que nessa data, falavam o mirandês. Na altura, as pessoas foram convidadas a contar as suas histórias, as suas lendas, os seus contos, as suas lhonas e as suas orações. E toda esta recolha foi depois plasmada em livro. Recordo que na apresentação pública do trabalho, em Picote, as pessoas participantes foram convidadas e foi um momento muito belo, porque as pessoa viram o seu saber reconhecido e a língua valorizada. Este trabalho foi muito gratificante! É preciso continuar a acarinhar os falantes de mirandês.
T.M.N.: Assumiu vários cargos, entre os quais o de diretor do Centro de Estudos António Maria Mourinho. Que iniciativa foi esta?
A.B.A.: O padre António Maria Mourinho foi um dos guardiões da língua mirandesa, durante grande parte do século XX. Quando ele morreu em 1996, deixou grande parte do seu espólio à Câmara Municipal de Miranda do Douro. E no ano 2000 foi criado um grupo de trabalho para estudar esse espólio. Depois em 2003, o então ministro da educação, Mariano Gago, incentivou a criação de centros de investigação. E eu propus a criação de um centro de estudos não só para estudar o espólio de António Maria Mourinho, mas também para dar continuidade ao trabalho de investigação sobre a língua mirandesa. E foi aí que nasceu o Centro de Estudos António Maria Mourinho, através de um protocolo com a UTAD, onde eu era investigador e que nessa data tinha um polo em Miranda do Douro. O protocolo foi estabelecido com a Câmara Municipal, que então cedeu as instalações na Biblioteca Municipal. No entanto, depois houve o encerramento do polo da UTAD e ainda que o protocolo continue vigente, não se realizaram novos trabalhos.
T.M.N.: Também é secretário da FRAUGA – Associação para o Desenvolvimento Integrado de Picote. Que trabalho têm realizado pela língua mirandesa?
A.B.A.: A FRAUGA nasceu em 1996 graças à iniciativa de um grupo de jovens de Picote, para a defesa e preservação da língua e cultura mirandesas, que já então considerávamos como as traves mestras da identidade da Terra de Miranda. Uma das nossas primeiras iniciativas foi colocar a toponímia em mirandês, nas ruas da localidade de Picote. Para quê? Para trazer o mirandês para a rua, para divulgar e valorizar a língua e os seus falantes.
T.M.N.: A palavra “frauga” tem um significado sugestivo.
A.B.A.: Sim, “frauga” é uma palavra mirandesa que significa forja, ou seja, era a oficina do ferreiro. Antigamente, quando as pessoas iam compor os seus instrumentos de trabalho ao ferreiro diziam que “andavam de frauga”. Nestas oficinas, para além da função do ferreiro que metia o objeto no fogo para o aquecer e ficar moldável, eram necessárias mais duas pessoas para malhar o ferro, uma de cada lado. Ou seja, era necessário um trabalho em conjunto. Também nesta associação, percebemos que para fazer alguma coisa temos que trabalhar em conjunto.
T.M.N.: No passado mês de setembro, a FRAUGA, num trabalho conjunto com a freguesia local, organizou em Picote, a I Fiesta de las Lhénguas. O que se pretende fazer com este evento?
A.B.A.: Como o próprio nome diz, pretendemos fazer uma festa. Para nós, a diversidade linguística deve ser motivo de celebração. A ideia de que todos deveríamos falar a mesma língua é um absurdo. Pelo contrário, devemos valorizar a diversidade e festejar esta diferença! Veja-se o mosaico cultural de que a Europa e o mundo são feitos! Ainda que, por vezes, se corra o risco de existir má comunicação. Não devemos deixar morrer as línguas, nem as palavras, porque assim ficamos mais pobres. Nesta I Fiesta das Lhénguas tivemos a participação de associações e representantes do espaço falante do asturo-leonês. No futuro, queremos estar abertos a todas as línguas europeias e do mundo. A II Fiesta de las Lhénguas vai realizar-se no fim-de-semana de 21 e 22 de setembro, aproveitando o Dia Europeu das Línguas, que se comemora a 26 de setembro.
Perfil
António Bárbolo Alves, nasceu em Picote – Miranda do Douro, a 5 de Dezembro de 1964.
Licenciou-se em ensino de Português e Francês, pela universidade do Minho e começou a lecionar em 1997, tendo atualmente mais 30 anos de serviço
Concuiu um Mestrado em Ensino da Língua e Literatura Portuguesas pela Universidade do Minho, com a tese “A língua mirandesa – Contributos para o estudo da sua história e do seu léxico”, Universidade do Minho, 1997.
Durante o serviço militar obrigatório, (1989-1990) desempenhou as funções de Tradutor de francês, na 6ª Repartição do referido Estado Maior do Exército
De 1991 a 1994, esteve, em regime de destacamento, no Pólo do Projecto Minerva da Universidade do Minho, tendo por função dar apoio técnico-pedagógico às escolas abrangidas por esse Pólo, fazer o acompanhamento de projectos educativos em curso nessas escolas, assim como participar em projectos de investigação e implementação das Tecnologias da Informação no ensino.
De 1997 a 2003 foi Leitor (Professor) de Língua e Cultura Portuguesas na Universidade de Nice (França).
Em 2002, doutorou-se pela Universidade de Toulouse (França).
Assumiu vários cargos de gestão e representação, entre os quais o de diretor do Centro de Estudos António Maria Mourinho, secretário da direção da FRAUGA e Secretário Territorial para Portugal da Associação Internacional pela Defesa das Línguas e das Culturas Ameaçadas (AIDLCM).
Desde 2022, é sócio correspondente da Classe de Letras da Academia das Ciências de Lisboa (2.ª Secção – Filologia e Linguística).
HA