Opinião: Programa de Estabilidade é eleitoralista, otimista e incerto – Óscar Afonso
Há poucos dias, o Ministro das Finanças apresentou as grandes linhas do Programa de Estabilidade 2023-2027 (PE 23-27).
Comecemos pelo enquadramento deste exercício previsional antes de uma análise de alguns dos principais números.
A política económica é um exercício de escolhas. No caso da política orçamental, a elaboração quer de um Orçamento do Estado para um ano quer de um Programa de Estabilidade, com um horizonte temporal mais alargado, está sujeita à margem orçamental de partida e à permitida pelo crescimento previsto do PIB, em termos nominais e reais, que irá determinar a evolução da receita, da despesa e da dívida pública consoante as prioridades estabelecidas, com efeitos redistributivos diversos, a nível intra e inter-geracional.
Acontece que o atual contexto de incerteza historicamente elevada, marcado pela guerra na Ucrânia e pela fragmentação em blocos geopolíticos (no âmbito da luta pela hegemonia global entre EUA e China) dificulta muito a elaboração de previsões de crescimento económico (e, consequentemente, das variáveis orçamentais), em particular em períodos mais alargados, como é o caso do PE 23-27, o que deve ser tido em conta na análise dos números e dos riscos de exequibilidade das promessas incorporadas de forma mais ou menos explícita no documento.
De facto, a mensagem passada na apresentação do PE 23-27 foi de uma aparente prioridade à distribuição de “benesses” pelos principais grupos de eleitores, com um aumento intercalar de pensões (que apenas repõe a atualização legal que tinha sido incumprida) e de vencimentos de funcionários públicos, um incremento dos apoios sociais, uma redução do IRS ao longo de cinco anos e um maior crescimento do investimento público e privado (pela “aceleração da execução do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) e o lançamento do PT 2030”). Este conjunto de promessas aparece sob o chapéu das duas primeiras prioridades apresentadas pelo Governo, “Proteger o rendimento das famílias” e “Acelerar o investimento modernizador”.
Contudo, a realidade dos números mostra que é a terceira prioridade, “Prosseguir a redução da dívida pública”, o principal foco do PE 23-27, com o rácio da dívida pública no PIB a cair de 113,9%, em 2022, para 99,2%, em 2025, e 92,0%, em 2027, que serão os níveis mais baixos desde 2010 (considerando valores em final de ano), caso se confirmem, o que favorece custos de financiamento mais baixos e torna Portugal menos suscetível a eventuais perturbações nos mercados financeiros, além de promover uma maior equidade inter-geracional.
A memória do regaste da troika está ainda bem presente, é a conclusão a que se chega, pois seria possível, à luz das regras europeias, uma trajetória mais lenta de descida do rácio de dívida pública, com um menor saldo orçamental e outras prioridades de receita e de despesa, desejavelmente uma maior aposta no investimento público – que, na verdade, continua a ser sacrificado, como se mostra abaixo na evolução da despesa e capital -, numa perspetiva de crescimento económico (e também de maior equidade inter-geracional), ou até, numa lógica eleitoral uma distribuição mais palpável de “benesses” (também uma opção, mas que não promove a geração e distribuição sustentada da riqueza para as várias gerações).
Com efeito, o saldo orçamental passa de -0,4% do PIB, em 2023, para 0,1% do PIB, em 2027, – valores muito acima do que seria preciso para cumprir as regras orçamentais europeias -, refletindo uma descida do rácio da despesa total (-2,7% do PIB, para 42,1%: -1,7% do PIB na despesa corrente, para 38,7%, e -1,0% do PIB na despesa de capital, para 3,4%) superior à prevista no caso do rácio da receita total (-2,2% do PIB, para 42,2%: -0,9% do PIB na receita de capital, para 0,7%, e -1,3% na receita corrente, para 41,5%, variação esta repartida entre -0,6% do PIB na receita fiscal, 0,1% na contribuições sociais e -0,6% na outra receita corrente).
Ora as projeções do Governo para a evolução do PIB nominal são relativamente otimistas nas suas duas componentes: (i) crescimento do PIB em volume até 2027 (1,8%, 2,0%, 2,0%, 1,9% e 1,8%) superior às previsões de março do Conselho de Finanças Públicas, CFP (1,2%, 1,8%, 2,0%, 1,7% e 1,7%) e às de abril do FMI (1,0%, 1,7%, 2,2%, 1,9% e 1,9%), em termos acumulados; (ii) variações do deflator do PIB (componente preço) acima das do CFP em todos os anos e acima das do FMI em vários anos, em ambos os casos maiores em termos acumulados.
Focando agora a análise no crescimento económico (crescimento do PIB em volume), que verdadeiramente aumenta o “bolo” para distribuir – pois a inflação apenas tem efeitos redistributivos, penalizando o poder de compra da população em favor do Estado se este não devolver todo o acréscimo de receita associado -, o PE 23-27 aponta para uma variação média anual do PIB de 1,9%, em termos reais, acima do valor de 1,7% associado às previsões do FMI, que é o décimo mais baixo dos Estados-membros da União Europeia.
Assim, o crescimento económico de Portugal é relativamente baixo face aos países do mesmo espaço económico europeu, sujeitos a regras e enquadramento semelhantes, mas também tendo em conta o afluxo irrepetível de fundos comunitários – os relativos ao PRR e os do Portugal 2030.
Comparando com o desempenho passado, as previsões de crescimento médio anual até 2027 do Governo e do FMI são claramente superiores ao ritmo anual de apenas 0,9% neste milénio (entre 1999 e 2022). Contudo, são inferiores à média anual de 2,8% entre 2017 e 2019, após a retoma do PIB para o nível pré-troika (para evitar um efeito de base), valor esse que incorpora melhorias estruturais decorrentes do programa de ajustamento (aumento significativo da intensidade exportadora de bens e serviços e reequilíbrio das contas externas), embora beneficiando também de taxas de juro próximas de zero, que já não existem até 2027, ainda que o efeito de subida recente das taxas de juro se dilua no conjunto no período 2023-2027.
Por outro lado, os anos de 2026 e 2027 são de abrandamento económico em qualquer das previsões (Governo, CFP e FMI), sinalizando que o maior crescimento tendencial poderá não ser sustentado além de 2027, onde termina o horizonte de projeção. Ou seja, há dúvidas se os investimentos e reformas (basicamente as que estão previstas no PRR, pois este Governo é assumidamente avesso a reformas estruturais) previstos para os próximos anos terão um impacto que perdura para o futuro em termos de elevação do crescimento económico potencial, essencial para melhorar de forma sustentada as condições de vida da população.
Resta saber se, face a uma possível revisão em baixa das perspetivas de crescimento económico, o Governo continuará a dar prioridade à redução do rácio da dívida pública; i.e., se efetivamente o Programa de Estabilidade é, como tudo revela, eleitoralista, otimista e incerto, limitado pela prioridade à redução da dívida pública e pelo crescimento económico baixo.
Óscar Afonso, diretor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, professor catedrático e sócio fundador do Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF)