Sendim: Criação da “Scuola d’Amadeu Ferreira”

A antiga Escola Primária de Sendim, atual Casa da Cultura, vai transformar-se na “Scuola d’Amadeu Ferreira”, um nova valência cultural, inteiramente dedicada à divulgação da vida e obra de Amadeu Ferreira, um dos maiores defensores e promotores da língua mirandesa.

Segundo o município de Miranda do Douro, o projeto da “Scuola d’Amadeu Ferreira” vai integrar a “Rota Escritores a Norte” e homenagear Amadeu Ferreira, jurista, escritor e tradutor que elevou o mirandês, ao traduzir obras como “Os Lusíadas” e “Mensagem”.

A programação da futura escola prevê apresentar uma exposição permanente, dedicada ao percurso de vida e profissional de Amadeu Ferreira. Na programação regular, este novo espaço cultural vai oferecer ao público tertúlias, recitais de poesia, workshops, concertos e lançamentos de livros em português e mirandês e um espaço de estudo.

«A Scuola d’ Amadeu Ferreira pretende ser um local para celebrar a “nascente de escrita” que o autor descobriu ainda criança, na vila de Sendim. A criação deste espaço cumpre também o desejo do autor de que a sua memória fosse celebrada não com lágrimas, mas com a vivacidade da língua que tanto amou», indica o município de Miranda do Douro.

A criação da Scuola d’Amadeu Ferreira representa um investimento no valor de 89.482,50 euros e visa reforçar a dinamização cultural da Terra de Miranda, ao mesmo tempo que perpetua a memória de um dos seus mais ilustres defensores.

Amadeu Ferreira nasceu a 29 de julho de 1950, sendo o segundo de cinco filhos, numa família tradicional e humilde. A sua primeira língua foi o mirandês, aprendido em casa e na rua, entre vizinhos e amigos. Apenas aos sete anos, ao entrar na escola, teve contacto
com o português, então a única língua oficial do país.


Desde cedo demonstrou uma enorme paixão pela leitura. Na década de 60, as bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian percorriam mensalmente as aldeias e permitiam requisitar três livros por pessoa. Para o jovem Amadeu, que devorava os três livros numa única tarde, essa quantidade era insuficiente. Organizou então um pequeno grupo de amigos para que cada um requisitasse livros diferentes, chegando a ter acesso a cerca de 30 obras por mês.

O gosto pela escrita surgiu muito cedo. Aos 12 anos, a sua primeira redação intitulada “As folhas caindo”, lida em voz alta pelo professor de português perante toda a turma, revelou-lhe aquilo que viria a chamar de “nascente de escrita”. A partir desse momento, nunca mais deixou de escrever. Por sugestão do sacerdote da aldeia, ingressou no seminário, onde concluiu o seminário menor e quase terminou o curso de teologia. Acabaria, no entanto, por abandonar a vida religiosa para ajudar a família e seguir outros caminhos.


Mudou-se para Lisboa, onde, apesar de pacifista, foi obrigado a cumprir o serviço militar. Durante esse período, matriculou-se na Faculdade de Direito de Lisboa, onde se envolveu politicamente, alinhado com a esquerda marxista-leninista. Participou na Revolução do 25 de Abril como alferes miliciano e, no ano seguinte, escreveu a sua primeira obra em mirandês, intitulada “Operários e Camponeses”, uma peça de teatro levada à cena e transmitida na RTP.

Frequentou também a Faculdade de Filosofia do Porto e, em 1981, tornou-se dirigente máximo do partido em que militava, chegando a ser deputado na Assembleia da República. No entanto, abandonou a política partidária em 1982 e regressou ao estudo do Direito. Concluiu o curso em 1990 com a melhor média do ano e passou a lecionar na universidade, publicando várias obras científicas.

Em 1994 concluiu o mestrado em Direito dos Valores Mobiliários e, entre 2005 e 2015, desempenhou funções como vice presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. Recusou por diversas vezes convites para integrar o Governo de Portugal.


Com a vida profissional estabilizada, dedicou-se com maior intensidade à defesa da língua mirandesa. O ano de 1999 foi decisivo, com a aprovação da Lei 7/99, de 29 de janeiro, que oficializou o mirandês em Portugal, e com a publicação da Convenção Ortográfica da língua mirandesa. Amadeu Ferreira percebeu que era necessário unir os escritores, os estudiosos e os falantes, criando instituições e estruturas que assegurassem a vitalidade da língua.

Fundou a Associação de Língua e Cultura Mirandesa, da qual foi eleito presidente, e promoveu cursos de alfabetização em Lisboa e na Terra de Miranda,
contribuindo também para o alargamento do ensino da língua mirandesa na escola pública.


A sua dedicação valeu-lhe, a 10 de junho de 2004, a condecoração da Ordem do Mérito atribuída pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio, pelo trabalho excecional em defesa da língua e da cultura mirandesas. Além da escrita original, destacou-se como tradutor, vertendo para mirandês obras de enorme relevância nacional, como “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, e “Mensagem”, de Fernando Pessoa.


Em junho de 2013, durante uma visita à família, em Miranda do Douro, sentiu-se mal e entrou em coma. Foi diagnosticado com um cancro no cérebro. Os médicos deram-lhe entre um e dois anos de vida. Enfrentou a doença de forma lúcida e serena. Como começou a perder a visão e a capacidade de escrever, contou com o apoio de um amigo próximo, que o ajudou a registar os textos que ainda desejava deixar. Nessas circunstâncias, decidiu também transferir a sede da Associação de Língua e Cultura Mirandesa de Lisboa para Miranda do Douro, assegurando que a instituição permanecesse enraizada na terra que
tanto amava.


Amadeu Ferreira faleceu a 1 de março de 2015, na sua casa, em Sendim. Pediu para ser cremado e que as suas cinzas fossem espalhadas junto ao tronco de uma antiga oliveira existente no quintal, em Sendim. Desejou igualmente que a sua morte não fosse marcada por lágrimas, mas sim por uma celebração da língua mirandesa, convidando quem o quisesse a juntar-se na Casa da Cultura de Sendim para ler os seus textos e poemas.


O espaço que dará lugar à Scuola d’Amadeu Ferreira acolhe atualmente uma exposição fotográfica dedicada às gentes e tradições de Sendim, um acervo bibliográfico de consulta pública e uma loja de produtos locais e merchandising. Entre as coleções existentes destacam-se as obras do próprio autor e ainda os fundos bibliográficos doados à União de Freguesias de Sendim e Atenor pelo pároco Manuel João Afonso e por Zeca Meirinhos.


A Scuola d’Amadeu Ferreira nasce, assim, como um tributo duradouro à vida, à obra e ao legado de um homem que dedicou décadas à preservação da língua mirandesa e ao fortalecimento da identidade cultural da Terra de Miranda.

Fonte: MMD

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