Reportagem: Roscos sagrados
Segundo a UNESCO, património, não é somente os monumentos e sítios, mas também as línguas, o saber-fazer, os rituais e as tradições. Há uma tradição em Águas Vivas e em São Pedro da Silva, em que os protagonistas são os roscos. Uns bolos com a forma de argola, feitos comunitariamente e que são muito apreciados por miúdos e graúdos. O que têm estes roscos de extraordinário? E porque é que as pessoas gostam tanto desta tradição? Fui à procura do sabor dos roscos e do saber da tradição. (por Hugo Anes)
Giolanda, a alma dos roscos
Cheguei à aldeia de Águas Vivas e fui recebido pela Dilar Neto, a representante da junta de freguesia local. Quando soube do motivo da minha visita, levou-me ao encontro da dona Giolanda, uma senhora que no próximo mês de maio vai celebrar 92 anos! A dona Giolanda e a Dilar, representam duas gerações diferentes, mas ambas demonstram ter muito carinho à sua aldeia e às tradições. Quando lhes perguntei pela origem da festa dos roscos, vim a saber que a tradição é muito antiga. Conta-se que a festa terá começado após o recrutamento dos jovens da aldeia para uma guerra. O povo, aflito, decidiu fazer uma promessa a Deus: se os jovens regressassem sãos e salvos, organizariam uma festa em ação de graças. Ao que parece, assim aconteceu: os jovens regressaram de boa saúde e o povo decidiu cumprir a promessa. Reuniram-se, pediram-se as esmolas e a tradição começou a realizar-se, na festa de Nossa Senhora das Candeias, a 2 de fevereiro. Mais recentemente, mudaram a tradição para o Domingo gordo, dado que são as férias do carnaval e há mais jovens na aldeia. E são os jovens que organizam a festa. Em cada ano, há duas raparigas, as chamadas mordomas, que têm a missão de chamar as outras para o baile, que decorre de terça-feira a sábado, ao serão, à volta da fogueira.
Os roscos
A confeção dos tão apreciados roscos começa na quarta-feira de manhã. É um trabalho comunitário que gera um grande entusiasmo e azáfama, em toda a aldeia. Em primeiro lugar, há que reunir os ingredientes. São necessários ovos, açúcar, farinha, fermento, manteiga, gordura de porco e um pouco de aguardente para dar aroma aos roscos ou em alternativa, anis. Como ensina a dona Giolanda, para cada três dúzias de ovos, junta-se um quilo de açúcar. E quanto à farinha, houve anos em que se compraram 13 sacos, o equivalente a 150 quilos! Após reunir os ingredientes, as primeiras tarefas são: partir os ovos e preparar a massa. Esta, depois de bem amassada, vai ficar a levedar, até ao dia seguinte. Na quinta-feira, os trabalhos recomeçam bem cedo, pois é dia de colocar a massa nas formas e de as levar ao forno a lenha. A cozedura dos roscos é um trabalho que se prolonga por todo o dia. Por isso, só na sexta-feira é que os roscos estão prontos. No sábado à noite, os jovens mordomos organizam uma pequena festa para a juventude, com o propósito de escolher os “perneiros”. Os “perneiros” são os cinco rapazes que, pela sua generosidade na esmola, vão ter a honra de, no dia da festa, transportar os andores de Nossa Senhora das Candeias e o andor com os roscos.
Chegados ao dia da festa, o Domingo começa com a celebração da Missa. No decorrer da celebração expõe-se o andor ornamentado com os roscos. No final da celebração, o andor é colocado no átrio da Igreja, onde os rapazes o apregoam. O leilão só acontece à meia-noite, na casa do povo. A dona Giolanda diz que, houve anos, em que a venda dos roscos deu uma receita de 600 contos!
Os roscos no dia de Reis
Em São Pedro da Silva, a tradição dos roscos coincide com o Dia de Reis, que se celebra a seis de janeiro. Também aqui a tradição é organizada pelos jovens solteiros. Cabe assim a duas raparigas e um rapaz, serem os mordomos da festa. No entanto, esta tradição corre o risco de cair no esquecimento. O êxodo dos jovens para as cidades põe em causa a sua continuidade. Segundo Alfredo Cameirão, natural da aldeia e professor, a festa dos Reis era um dos momentos mais importantes da aldeia. “Era uma festa muito querida. Mas, devido ao despovoamento e ao envelhecimento da população, de modo muito expressivo em São Pedro da Silva, a tradição não se fez por vários anos.”. Ainda assim, a chegada do padre Rufino à paróquia trouxe um novo ânimo às pessoas. “Em São Pedro da Silva, sempre houve uma tradição muito fervorosa à volta do dia de Reis. Quando assumi a paróquia de São Pedro da Silva, a tradição estava a ser esquecida, já não estavam a celebrar o dia de Reis nem a confecionar os roscos. E ao escutar as pessoas, animei-as a recuperar a tradição.” Desde então, a comissão fabriqueira da paróquia decidiu organizar novamente a festa e voltaram a confecionar-se os roscos no dia de Reis!
Há a destacar que neste trabalho, as senhoras são as primeiras as arregaçar as mangas. Elisabete Esteves e a senhora Albertina de São Pedro, descreveram como preparam a festa. Dois dias antes, realizam o peditório pela aldeia, para recolher os ingredientes. Pedem-se ovos, farinha, manteiga, leite, aguardente, açúcar e fermento. Depois, distribuem-se as tarefas. Há que bater uma grande quantidade de ovos e misturá-los com o açúcar, até ficar no ponto. Há também que preparar a massa. Depois, as chamadas “feiteiras” colocam a massa nas formas. E ao que parece, os roscos assumem vários formatos. “Desde os utensílios da agricultura, como o arado, uma escada e até o padre a celebrar a Missa serve de inspiração para dar forma aos roscos!” – gracejou o padre Rufino. Na confeção dos roscos, há também que zelar pelo forno a lenha. Quando os roscos já estão cozidos, tiram-se do forno e adiciona-se-lhes um creme. Antigamente, os roscos eram pincelados com a gema do ovo. Mas agora, em São Pedro da Silva, em vez gema do ovo adicionam-lhe um creme de açúcar. Outra tarefa importante e original é esfregar as formas, que curiosamente, são as tampas das latas de tinta! Todo este trabalho comunitário, só está concluído ao final do dia.
No dia seguinte, sábado, é chegado o momento de ornamentar o andor com os roscos. Segundo, o padre Rufino, este é um trabalho que exige muita técnica, pelo que é importante que se transmita este saber às gerações mais novas.
Na noite de sábado, os mordomos percorrem as ruas da aldeia a convidar as pessoas para a degustação das “claras”. As claras são uns roscos pequeninos, feitos propositadamente para convencer as pessoas a comprar os roscos no dia da festa.
Chegados ao dia de Domingo, começa a festa! A celebração da missa é cantada, há a adoração do Menino Jesus e também a bênção do andor com os roscos. No final da celebração traz-se o andor para o adro da igreja, onde é leiloado. Depois, transporta-se o andor dos roscos para o salão da casa do povo, onde se desfaz: os roscos da parte superior destinam-se aos mordomos do próximo ano. O senhor padre também é presenteado com um desses roscos. E os restantes são para vender. Cada rosco custa 6 euros. A Elisabete e a senhora Albertina dizem que se vende tudo rapidamente!
Ao jantar, tradicionalmente come-se o butelo com as cascas. E a festa continua com o baile, que decorre no salão da casa do povo, onde por vezes, quase não se cabe, tanta é a afluência de gente!
A receita
Nesta tradição dos roscos, o que mais chama à atenção é a participação de toda a aldeia na preparação da festa. Há quem ofereça os ingredientes, como os ovos, a farinha ou o açúcar. Outros, arregaçam as mangas e dedicam-se ao trabalho, de partir os ovos, amassar a massa ou ficar responsáveis pelo forno. Há também quem venha à festa só para comprar os roscos.
A participação de toda a comunidade é, afinal, o que torna esta tradição tão querida em cada aldeia. Sob o pretexto da confeção dos roscos, as pessoas aproximam-se, convivem, trabalham juntas, rezam, comem, dançam, cantam, e assim estão a aprofundar o sentido de pertença à sua aldeia e a transmitir às novas gerações a sabedoria das suas tradições.
Quanto ao sabor dos roscos, há que seguir a receita:
Ingredientes utilizados: Ovos, gorduras (manteiga e azeite), açúcar, farinha, leite, aguardente, fermento em pó e bicarbonato de soda e anis.
Modo de preparação: Misturam-se os ovos com o açúcar e vão-se misturando os restantes ingredientes mexendo muito bem, por fim vai-se deitando a farinha até a massa ficar dura, de forma a se poder moldar e deixa-se repousar durante 1 hora. Seguidamente molda-se a massa com as mãos e coloca-se em tabuleiros, estes bolos apresentam-se de várias formas (formato de circulo, letras, entre outros formatos) e pincelam-se com gemas de ovos. Depois disso vão a cozer no forno de lenha, durante aproximadamente 20 minutos.
E juntar-lhe uma boa dose de partilha, de entreajuda e de amor, para que tudo tenha mais sabor!