Entrevista: “Trabalhar desde Palaçoulo obriga-nos a ser proativos” – Alberto Martins

A Cutelaria Martins, sediada em Paçaçoulo, celebrou 70 anos de atividade. Fundada por José Maria Martins, um antigo ferrador que para agir contra a sazonalidade desta profissão e a posterior mecanização da agricultura, acabou por se dedicar por inteiro à arte da cutelaria. O ofício foi depois continuado pelos seus filhos, entre os quais o atual gestor, Alberto Martins, que com o passar dos anos modernizaram a empresa e deram a conhecer as navalhas de Palaçoulo, ao mundo inteiro.

Terra de Miranda – Notícias: Ao longo destes 70 anos de atividade, que grandes mudanças e transformações aconteceram na cutelaria Martins?

Alberto Martins: Na década de 1980, com a integração dos filhos de José Maria Martins na empresa, as instalações foram ampliadas, houve um investimento significativo na aquisição de equipamento e reforçou-se a equipa de trabalho, à qual foi transmitido o “saber fazer” adquirido ao longo dos anos. Esta modernização da empresa permitiu ajustar a capacidade produtiva ao escoamento dos produtos.

T.M.N.: A mecanização da empresa não retirou o caráter artesanal dos vossos produtos?

A.M.: Não, mesmo com a introdução de máquinas no processo produtivo, cada peça produzida na Cutelaria Martins é trabalhada e supervisionada manualmente. Do ponto de vista comercial, esta qualidade é reconhecida pelo público, que considera os nossos artigos como peças de grande qualidade e valor.

T.M.N.: Quantas pessoas trabalham na cutelaria Martins e quais são os vossos produtos?

A. M.: Atualmente trabalham na empresa 24 pessoas e fabricamos três tipologias de produtos: as navalhas, as facas e talheres. No nosso volume de negócios, as navalhas são as que têm maior preponderância. Por isso, fabricamos diversos modelos destinados a vários nichos de mercado. Por exemplo, hoje em dia é possível encontrar um produto da cutelaria Martins numa livraria, no merchandising de uma cantora australiana ou nos brindes-empresa dos pilotos da Red Bull e da multinacional Bayer, que recorre aos nossos produtos para comunicar a sua marca. Para tal, procuramos ser uma referência, na apresentação das nossas peças em caixas de cartão ou de madeira personalizadas. Também o souvenir ou a lembrança de um local ou região é outro nicho de mercado que procuramos explorar.

“Hoje em dia é possível encontrar um produto da cutelaria Martins numa livraria, no merchandising de uma cantora australiana ou nos brindes-empresa dos pilotos da Red Bull e da multinacional Bayer, que recorre aos nossos produtos para comunicar a sua marca.”

T.M.N.: Nas montarias ao javali ou nos passeios pedestres que se realizam nesta região é muito comum os participantes receberem como lembrança uma navalha de Palaçoulo.

A. M.: Sim, porque estes objetos também são uma marca identitária da região. Antigamente, dizia-se que no mundo rural uma navalha era uma terceira mão, pois tanto permitia enxertar a vinha na atividade agrícola, como servia para cortar o pão, o presunto e o queijo.

T.M.N.: Para onde vendem as navalhas, facas e os talheres da cutelaria Martins?

A. M.: Fazemos vendas para vários países, mas o mercado ibérico continua a ser o principal destino dos nossos produtos. Atualmente, também se regista um crescimento das vendas no sul de França, no âmbito dos souvenires. Durante a pandemia realizamos uma reflexão e decidimos lançar uma linha de peças temáticas, dirigidas a áreas como a caça, a pesca, a agricultura, o ciclismo, o motard, o cavalo, a vinha e o vinho, entre outras áreas, que nos permitem entrar em diversos nichos de mercado.

Durante a pandemia realizamos uma reflexão e decidimos lançar uma linha de peças temáticas, dirigidas a áreas como a caça, a pesca, a agricultura, o ciclismo, o motard, o cavalo, a vinha e o vinho, entre outras áreas, que nos permitem entrar em diversos nichos de mercado.

T.M.N.: A inovação ou a criação de novos produtos é por isso uma aposta da vossa empresa?

A.M.: Sim, a inovação é o nosso maior argumento. Por um lado, permite ajustarmo-nos aos interesses do público nos vários nichos de mercado. E por outro lado, leva-nos a desbravar terreno e a descobrir novos potenciais mercados. A inovação pode ser feita ao nível do design dos produtos, mas também da metodologia e da eficiência nos processos produtivos e na tecnologia utilizada que traz melhor e maior capacidade produtiva. Arrisco dizer que uma empresa ou unidade de produção sem inovação está estagnada.

T.M.N.: Inovação mas sempre ligada à tradição.

A.M.: Sim, porque por mais conhecimento e inovação que haja, é importante lembrar a origem e a história da empresa. Volto a lembrar que a Cutelaria Martins foi construída em cima de uma carta ou licença de Ferrador, seguida de muitos anos de trabalho, de resiliência e de foco. Foi graças ao trabalho desenvolvido pelos nossos antepassados que chegamos ao presente e continuamos a projetar o futuro, com responsabilidade.

T.M.N.: Porque razão afirma que os produtos da Cutelaria Martins têm alma, história e identidade?

A.M.: Porque no fabrico das nossas navalhas há uma matriz que nos foi legada: um punho em madeira, um anel e uma lâmina em inox. Já me perguntaram porque não fabricamos canivestes suiços, ao que respondi que esse objeto não é transmontano. Todos os nossos produtos refletem a identidade e a história do povo transmontano.

A inovação pode ser feita ao nível do design dos produtos, mas também da metodologia e da eficiência nos processos produtivos e na tecnologia utilizada que traz melhor e maior capacidade produtiva.

T.M.N.: A cutelaria Martins está instalada em Palaçoulo, no interior do país. Esta localização é uma dificuldade acrescida ou não?

A.M.: Estarmos localizados no interior do país tem algumas desvantagens como a dificuldade de acesso ao conhecimento técnico e a criação de sinergias empresariais. No entanto, sou da opinião que devemos otimizar as circunstâncias, ou seja, ver também as vantagens desta localização. E uma das vantagens é estarmos mais próximos dos mercados europeus, desde logo da vizinha Espanha. Paradoxalmente, outra vantagem é a obrigatoriedade de produzir todos os componentes dos nossos artigos: as lâminas, os anéis e os punhos, o que no final torna as nossas peças diferenciadas e de valor acrescentado. Bem vistas as coisas, este trabalho acrescido desde Palaçoulo não nos deixa acomodar, obriga-nos a ser proativos e dá-nos uma maior capacidade de resposta aos desafios.

Outra vantagem de estarmos localizados no interior do país é a obrigatoriedade de produzir todos os componentes dos nossos artigos: as lâminas, os anéis e os punhos, o que no final torna as nossas peças diferenciadas e de valor acrescentado.

O processo de manufatura das navalhas de Palaçoulo, na Cutelaria Martins.

T.M.N.: O fundador da Cutelaria, José Maria Martins falecido em 7 de abril de 2016 deixou como principal legado os valores da simplicidade, lealdade e congruência. São estes os valores que continuam a nortear a empresa?

A.M.: Sim, estes valores são uma escola de vida. Na convivência com o meu pai aprendemos a praticar estes valores, assim como a honestidade, o respeito e o compromisso ou a honra para com os clientes.

T.M.N.: A localidade de Palaçoulo, através das várias empresas aqui sediadas, é um raro exemplo de como é possível agir contra o despovoamento e fixar a população. Na sua opinião, que outras empresas poderiam ter sucesso nesta região?

A.M.: Os exemplos vêm antes das empresas. Lembro-me do meu pai afirmar que se não tivesse enveredado pela área da cutelaria, teria criado uma empresa de calçado. E eu não duvido que teria sido bem sucedido. Porque era uma pessoa com valores, comprometido e muito focado. São estas as condições determinantes para ser bem sucedido em qualquer empresa ou tarefa, por mais simples e rotineira que seja. Sobre a realidade empresarial de Palaçoulo, estou convencido que o meu pai e as outras pessoas da sua geração, que desenvolveram empresas nas áreas da cutelaria, da tanoaria e mais tarde da serralharia são verdadeiros heróis, pelas adversidades que superaram e as boas práticas que implementaram e transmitiram às gerações seguintes.

“Os exemplos vêm antes das empresas. Lembro-me do meu pai afirmar que se não tivesse enveredado pela área da cutelaria, teria criado uma empresa de calçado. E eu não duvido que teria sido bem sucedido. Porque era uma pessoa com valores, comprometido e muito focado.”

Perfil

Alberto Afonso Martins

É licenciado em Assessoria de Administração pelo ISLA, Lisboa: e frequenta um um Mestrado em Marketing – Universidade Portucalense.

Desde 2014 é membro da Gerência, com a função de Diretor Geral da José Maria Martins – Cutelaria Tradicional de Palaçoulo, Lda.; acumula a responsabilidade da comunicação de conteúdos e publicações (Redes sociais e página Web) da Cutelaria Martins

Entre 2008  e 2014, foi o responsável pela definição e aplicação do plano de reposicionamento estratégico, da inovação e do marketing da Cutelaria Martins.

HA

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