Entrevista: «Há que valorizar a carne mirandesa na nossa própria região» – Engenheiro Nuno Paulo
O berço da raça bovina mirandesa coincide com a área etnográfica em que se fala o mirandês, a designada Terra de Miranda. Antigamente, esta raça era muito valorizada pela força de trabalho no campo. Hoje é sobretudo apreciada por produzir carne de excecional qualidade. Mas esta qualidade não é devidamente valorizada na nossa própria região, segundo o administrador da Cooperativa Agro Pecuária Mirandesa.
T.M.N.: Antigamente, os animais de raça bovina mirandesa eram muito valorizados pela sua força nos trabalhos agrícolas. Com a mecanização da agricultura houve um decréscimo do número destes animais?
Nuno Rodrigues Paulo: A raça bovina mirandesa foi a que teve maior expressão a nível nacional, havendo registos de 250 mil animais em todo o país. São uma raça dócil no trato e têm uma grande força para os trabalhos agrícolas. É verdade que com a mecanização da agricultura, a raça foi perdendo efetivos. Contudo, estes animais mantêm-se nos seis concelhos que hoje constituem o solar da raça bovina mirandesa: em Miranda do Douro, Mogadouro, Vimioso, Macedo de Cavaleiros, Bragança e Vinhais. Nestes seis concelhos existem atualmente 363 criadores, 4200 vacas e 242 touros. E é aqui, que se produz a Carne Mirandesa qualificada com Denominação de Origem Protegida (DOP).
T.M.N.: O que significa Denominação de Origem Protegida (DOP)?
N.R.P.: A designação DOP é concedida a produtos que correspondem a determinadas caraterísticas e que se submetem a rigorosos sistemas de controlo. Quando se cria uma denominação de origem protegida há que cumprir um conjunto de regras, como são a localização geográfica, as caraterísticas climáticas, o maneio e o saber dos criadores. Por exemplo, os lameiros tradicionais que existem na Terra Fria Transmontana e que servem de pasto aos bovinos, não existem em mais nenhum local do país. Esta e outras caraterísticas delimitam a zona geográfica e determinam a qualidade da carne. É por isso que a carne mirandesa certificada provém dos animais nascidos e criados no solar da raça.
“Os lameiros tradicionais, que existem na Terra Fria Transmontana e que servem de pasto aos bovinos, não existem em mais nenhum local do país.”
T.M.N.: A agricultura no planalto mirandês mudou bastante. Por exemplo, o cultivo de cereais foi substituído pelos olivais e os amendoais. A atividade da pecuária também mudou?
N.R.P.: É verdade que a agricultura e, mais concretamente o cultivo de cereais, mudou por causa da perda de competitividade e da não rentabilidade na sua produção, comparativamente com outras regiões da União Europeia. E a atividade pecuária também mudou. Nas últimas décadas, verificou-se um aumento do número de animais por exploração e passamos do modo de produção tradicional para a produção extensiva. Se antigamente, havia produtores com três e quatro vacas e era muito comum ver os animais a passar no meio das aldeias, hoje isso já não acontece. Atualmente, um produtor que tenha menos de 30 vacas não tem uma atividade rentável. Por razões de competitividade, de organização e de rentabilidade, o que existe é o modo de produção extensivo. Cada produtor tem 70 a 80 vacas, que vivem permanentemente no campo, onde existem infraestruturas ou então árvores que lhes servem de abrigo, contra a chuva, o frio, o calor e o vento. Digamos que se está a aproximar muito mais o animal à natureza.
“Se antigamente, havia produtores com três e quatro vacas e era muito comum ver os animais a passar no meio das aldeias, hoje, isso já não acontece. Um produtor que tenha menos de 30 vacas não tem uma atividade rentável.”
T.M.N.: A pecuária é uma atividade que dá muito trabalho?
N.R.P.: A pecuária é uma atividade que exige uma total disponibilidade dos criadores. Se na agricultura, as pessoas conseguem conciliar essa atividade com outros empregos, na pecuária isso não é possível. Ao criador é-lhe exigida uma atenção e dedicação constante com o bem-estar dos animais.
T.M.N.: Que cuidados se têm na alimentação dos bovinos de raça mirandesa?
N.R.P.: A Cooperativa Agro Pecuária Mirandesa tem um grande cuidado com a alimentação que se dá aos animais. Refiro, por exemplo, que 70% desta alimentação é produzida na região. E só utilizamos cereais nobres. Na aldeia de Duas Igrejas, existe uma unidade fabril onde se produz alimento à base do trigo e do centeio produzidos na região. Mas há outros cereais, como o milho e a cevada, em que somos obrigados a comprar noutras regiões.
“70% da alimentação dos bovinos mirandeses é produzida na região, E só utilizamos cereais nobres.”
T.M.N.: Perante o abandono dos campos, como se motivam os jovens para a agropecuária?
N.R.P.: Em primeiro lugar, há que adquirir conhecimentos na área – a agropecuária é uma ciência – para depois se investir. E mesmo os investidores têm que pensar bem, antes de enveredar por esta atividade. Porquê? Porque é uma atividade que exige um investimento muito grande. Por exemplo, para constituir uma empresa agropecuária há que reunir 200 a 300 mil euros para comprar os animais, os terrenos, as máquinas agrícolas, para construir as infraestruturas, etc. . Por norma, as pessoas que se dedicam à agropecuária já conhecem o setor. São, por exemplo, os filhos dos criadores, que vão dar continuidade ao trabalho dos pais. Eles já têm o conhecimento, a empresa já está em atividade e não precisam de realizar um investimento tão avultado. Mas para quem pensa construir uma empresa agropecuária de raiz, para além do elevado investimento, tem que enfrentar também a demora em obter rendimento imediato. Só ao 3º ou 4º ano de atividade é que há retorno financeiro. Em suma, o sucesso nesta atividade depende do conhecimento, do investimento e também da conjuntura económica favorável para que o projeto seja sustentável.
“Por norma, as pessoas que se dedicam à agropecuária já conhecem o setor. São, por exemplo, os filhos dos criadores, que vão dar continuidade ao trabalho dos pais. Eles já têm o conhecimento, a empresa já está em atividade e não precisam de realizar um investimento tão avultado.”
T.M.N.: Qual é a missão da Cooperativa Agro Pecuária Mirandesa, C.R.L.?
N.R.P.: A missão da Cooperativa Agro Pecuária Mirandesa, C.R.L. consiste em comercializar a produção, prestar serviços aos seus cooperantes e organizar-se. Desde 1996, que a cooperativa é a entidade gestora da marca “Carne Mirandesa”. E a nossa missão consiste em criar estruturas e canais de distribuição para vender os nossos produtos no mercado.
T.M.N.: A carne mirandesa dá origem a que produtos?
N.R.P.: Temos uma gama de produtos muito vasta. Graças à unidade industrial de transformação, localizada em Vimioso, utilizamos vários processos tecnológicos, como são os refrigerados, os congelados e a charcutaria. Na charcutaria apresentamos várias gamas de produtos como carnes verdes, os picados e os transformados. Para escoar estes produtos, estamos presentes em todos os canais de distribuição, quer no âmbito nacional quer internacional. Por exemplo, através do canal horeka comercializamos as chamadas partes nobres da vitela mirandesa como são a posta, a costeleta, etc. e que se destinam maioritariamente para os restaurantes e hotéis. Temos também a nossa gama de charcutaria, com vários produtos, tais como a Alheira Vitela, a Chouriça Tradicional Especial Assar, o Chouriço Mirandês, o Churrasquito Transmontano, o Paté de Fígado e Paté de Fígado c/ Tomilho.
“Através do canal horeka comercializamos as chamadas partes nobres da vitela mirandesa como são a posta, a costeleta, etc. e que se destinam maioritariamente para os restaurantes e hotéis.”
T.M.N.: Quem são os apreciadores da carne mirandesa?
N.R.P.: Como referi a marca “Carne Mirandesa” está presente no mercado nacional e internacional, sendo que a França é um dos nossos principais mercados. Para além da hotelaria e da restauração, também estamos presentes no mercado das grandes superfícies.
T.M.N.: Como se explica a popularidade do prato “Posta Mirandesa”?
N.R.P.: Desde o início do século XIX, quando os bovinos mirandeses foram a raça mais expressiva no país, que a carne é considerada de muito boa qualidade. E de facto, a carne mirandesa tem qualidades excecionais: tem um sabor e uma suculência únicas. A fama da posta mirandesa começou com a vinda de pessoas de outras regiões do país para aqui comprar animais de raça mirandesa. Depois, na década de 1990, a certificação da carne, a valorização da gastronomia e o desenvolvimento do turismo deram a conhecer ainda mais a qualidade desta carne.
“A carne mirandesa tem qualidades excecionais: tem um sabor e uma suculência únicas.”
T.M.N.: A fraude, isto é, o vender carne não certificada como sendo mirandesa prejudica o vosso trabalho?
N.R.P.: Sim, é um problema. No ano 2020, por exemplo, apenas 2,8% das nossas vendas se destinaram para esta região. E isso deixa-me muito triste. É inacreditável, a quantidade de fraude de carne mirandesa que se pratica no próprio solar da raça. Temos conhecimento desta irregularidade através da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), que está constantemente a identificar pessoas que cometem essas transgressões. Nos últimos dois anos, houve 68 processos em todo o país de uso indevido da marca “Carne Mirandesa”, alguns dos quais no solar da raça. Por isso, na minha opinião, é urgente uma mudança de paradigma no setor hoteleiro da nossa região. E a comunicação social pode ter um papel preponderante para ajudar a mudar mentalidades e dar valor ao que à qualidade do tradicional. Penso, por exemplo nos turistas que nos visitam e que muitas vezes vêm com a intenção de provar a qualidade da carne mirandesa e no final são enganados.
“No ano 2020, apenas 2,8% das nossas vendas se destinaram para esta região. E isso deixa-me muito triste. É inacreditável, a quantidade de fraude de carne mirandesa que se pratica no próprio solar da raça mirandesa.”
T.M.N.: A pandemia está a afetar a comercialização da carne mirandesa?
N.R.P.: Sim, a pandemia obrigou-nos a adaptarmo-nos às novas circunstâncias. De um dia para o outro, a hotelaria encerrou e as exportações pararam. De 430 clientes ativos, passamos para apenas 19. Atravessámos um período muito mau, que nos obrigou a repensar a estratégia comercial e os canais de distribuição. Em 2020, tivemos que dirigir os nossos produtos para os supermercados, onde conseguimos triplicar as vendas. Hoje, estamos a vender sobretudo para os supermercados. É a nossa forma de escoar a produção, embora a um preço inferior ao praticado antes da pandemia. Se no ano passado, a cooperativa estava a pagar o quilo de carne ao produtor a 5,5 euros, atualmente pagamos o quilo a cinco euros. Com a pandemia a condicionar a nossa atividade, com os restaurantes e hotéis ainda fechados, continuamos a viver na incerteza. Se vamos retomar esses mercados? Estou convencido que sim. Mas não sei dizer quando.
“Em 2020, com o surgimento da pandemia tivemos que dirigir os nossos produtos para os supermercados, onde conseguimos triplicar as vendas.”
Perfil:
Nuno Rodrigues Paulo, nasceu 20/10/1973 e é natural de Picote (Miranda do Douro). Licenciou-se em Engenharia Agronómica – ramo de Zootecnia e concluiu uma Pós-graduação em Higiene e Segurança no Trabalho e Tenologia de Produtos Agroalimentares. Também é mestre em Tecnologia Alimentar. Desde 1996 que trabalha na Cooperativa Agro Pecuária Mirandesa, C.R.L e em finais de 2010, assumiu a responsabilidade de Assessor do Conselho de Administração e Gestão de Projetos.
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