Reportagem: A tradição da matança do porco
Na casa de Isidro e Helena Galego, em Vimioso, continua a realizar-se a matança do porco para consumo doméstico. Antigamente, esta tradição tinha uma grande importância na economia familiar dado que assegurava a provisão de carne para todo o ano. Hoje, esta prática em contexto familiar é muito rara, pelo que urge preservá-la na memória coletiva como património cultural.
A criação de um porco para consumo doméstico dá muito trabalho e a tarefa prolonga-se entre 12 a 14 meses. De acordo com Isidro Vicente, para que o porco produza uma carne suculenta e de qualidade, a alimentação baseia-se nos produtos de cada estação do ano, como são as abóboras, as batatas, as beterrabas, as nabiças, os nabos, a cevada, o milho ou as maçãs.
A matança do porco
O dia da matança é combinado com antecedência. Este ano foi agendado para o dia 15 de janeiro. E como habitualmente, convidaram-se os familiares e amigos. Por isso, para além do trabalho o dia da matança do porco é também uma festa, caraterizada pela entreajuda e o convívio entre todos os participantes.
O abate do porco é da responsabilidade dos homens e as mulheres recolhem o sangue.
Depois de morto, o porco é chamuscado para queimar o pelo. Antigamente, utilizava-se palha, carquejas e giestas. Mais recentemente, utiliza-se um maçarico a gás. Segue-se a raspagem da pele com uma faca, acompanhada de sucessivas lavagens de água.
De seguida, abre-se o corpo do animal para lhe retirar as tripas ou vísceras. A lavagem das tripas, que vão servir para fazer os enchidos, é feita pelas mulheres em água corrente. Neste processo, as mulheres Helena, Isabel e Corina servem-se de pequenos paus para virar as tripas e limpar o interior dos intestinos. Depois de lavadas, as tripas são envoltas em aguardente, sal, alho e louro para retirar o cheiro desagradável.
Ao final da manhã, pendura-se o porco em local abrigado mas arejado, para que a carne esfrie e o sangue escorra.
O almoço
O almoço é um verdadeiro momento de confraternização. Os donos da casa, Vicente e Helena são os cozinheiros. Ela é natural de Teixeira, no concelho de Miranda do Douro e faz questão de manter a tradição aprendida na sua aldeia de servir como almoço, as “sopas de sangue”. Trata-se de uma receita de pão fatiado e temperado com vinagre, azeite, alho e o sangue do porco.
Outro prato caraterístico deste dia são os “garrotes”, que são a carne do cachaço do porco refugada no pote, à lareira, e servida com batata cozida.
Segundo a tradição, após o almoço os homens jogavam ao fito. Enquanto as mulheres continuavam a lavar as tripas para fazer os enchidos.
O desmanche do porco
O dia seguinte é dedicado à tarefa do desmanche do porco. Divide-se a carne que é para salgar e a parte que será utilizada para temperar e fazer o fumeiro.
De acordo com José Madureira, os presuntos, espáduas, patas, orelhas e o toucinho vão para a salgadeira.
Os rins, pulmões, fígado vão ser utilizados para fazer as “bochas”.
Os lombos e as lombelas destinam-se para fazer os salpicões.
As chouriças de carne são feitas com as febras do porco e o pescoço.
A carne da barriga é para os chouriços.
E as costelas, espinhaços e o rabo são para os butelos.
O fabrico do fumeiro
Depois de selecionadas e cortadas as carnes chegou o momento de preparar a “surça”, a calda condimentada que vai envolver as carnes para lhe dar o gosto antes do enchimento.
Na confecção das chouriças, butelos e salpicões é comum usar-se sal, alho, pimenta e louro, ficando a carne a repousar durante 24 horas.
Nas alheiras, o pão é amolecido na água de cozer as carnes e os condimentos utilizados são o alho, a salsa e o azeite e o louro.
Segue-se depois o enchimento com a carne já temperada.
À medida que as alheiras, chouriças, salpicões e butelos vão sendo enchidos são colocados nas traves colocadas no teto da cozinha, por cima da lareira, para iniciar a cura e conservação. Realce-se que o telhado da cozinha não tem forro para permitir uma melhor circulação do ar, a entrada do frio do inverno e a passagem do fumo.
Helena Galego explicou que o frio das geadas é muito importante para a cura e secagem do fumeiro.
“O fumo proveniente da lareira também contribui para o cozedura lenta e contínua dos enchidos, ao mesmo tempo que lhes dá cor”, explicou.
O tempo de cura varia consoante o tipo de enchido.
“Enquanto, as alheiras demoram apenas três a quatro dias a ficar curadas. As chouriças e os salpicões demoram um mês a ficar comestíveis”, explicou.
Se antigamente, o fumeiro era muito importante dada a necessidade de conservar a carne por longos períodos de tempo. Hoje, esta tradição familiar está em risco de desaparecer, porque “o processo de criação, alimentação, matança do porco e o fabrico do fumeiro dá muito trabalho.
A investigadora Patrícia Cordeiro, também esteve presente em casa de Isidro e Helena Galego, no passado dia 15 de janeiro, aquando da matança do porco, para fazer uma recolha de receituário tradicional de Trás-os-Montes.
A investigadora disse que a recolha faz parte do programa Gastronomia TMAD – “Saber e sabores de Trás-os-Montes e Alto Douro” (Sabre (gastronomiatmad.pt)), cujo objetivo é o de apresentar uma candidatura desta prática alimentar, à Lista de Boas Práticas do Património Cultural Imaterial da UNESCO.
“Atualmente, apesar do fumeiro ser muito conhecido e de ser uma mais valia económica para a região de Trás-os-Montes, esta prática em contexto familiar é muito rara. Hoje em dia, o nosso estilo de vida é diferente e já não há tempo para criar um porco durante o ano, para realizar o abate e para confeccionar o fumeiro. Mas esta prática é património imaterial e por isso, é importante preservá-la e mantê-la”, disse.
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